São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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Ponto de fuga

Velhos papéis

Para quem nunca leu Alberto Moravia, talvez os "Contos Dispersos" sejam o melhor começo. O livro é involuntário. Moravia escrevia com regularidade, na madrugada, sempre e muito. Não gostava de voltar sobre o escrito, de rever, de arquivar seus próprios textos. Ao morrer, em 1990, com 83 anos, deixou uma produção vasta. Grande número de contos, publicados em jornais e revistas, terminaram esquecidos por ele. Não porque o autor os tivesse desprezado. Parecia-lhe, certamente, melhor escrever outras histórias do que recolher e classificar as antigas.
Esses tesouros abandonados já haviam provocado, em 1993, uma coletânea póstuma de contos esparsos, intitulada "Romildo", logo depois traduzida e publicada no Brasil pela editora Bertrand. Essa mesma casa lançou, há pouco, os "Contos Dispersos". Nada menos que 69 esplêndidas narrativas, redigidas entre 1927 e 1951 e que, até então, estavam "sepultadas nas páginas dos jornais e das revistas", como dizem os organizadores Casini e Serra no prefácio.
São histórias sem a mesma homogênea inspiração dos "Contos Romanos" (ed. Berlendis & Vertecchia, 2003, belo volume com ilustrações de Marco Giannotti). Estes, publicados pelo próprio Moravia, nasceram com formato bem determinado pelas colunas que ocupavam semanalmente no jornal "Corriere della Sera". Centram-se em personagens miseráveis e picarescos rondando na Cidade Eterna do pós-guerra. Pelas épocas e origens diferentes, os "Contos Dispersos" revelam, ao contrário, tons e climas contrastados. São muitos "moravias" que saem dali.

Mobile - Moravia, o realista ou neo-realista. Moravia, o proto-existencialista. Moravia, de estilo neutro, contido, modesto, que afirmava fazer "antiliteratura". Moravia, o pintor desencantado da burguesia, o "grande escritor estático", como disse dele Otto Maria Carpeaux. Moravia, o homem de esquerda, retratado pelo pincel de Guttuso. Tudo isso é verdade, sem dúvida. Ou foi verdade.
"Contos Dispersos" é como um caleidoscópio; as imagens que ele configura, inesperadas, tendem a abalar os lugares-comuns sobre seu autor e a indicar outros modos, mais contemporâneos, de percebê-lo.
A frase voluntariamente acinzentada é capaz de recobrir tanto a melancolia poética, metafórica, quanto o humor cínico e patético, o mesmo que habita os "Contos Romanos". Ele corresponde, na perfeição, ao do grande cômico Totó, que encarnou personagem de Moravia no cinema.
Há o fascínio pela fronteira tênue entre mania e loucura, que o autor descreve sem explicar, por meio de uma neutralidade inquieta. Há a enorme atração pela sexualidade e também pela psicanálise, na verdade incapaz de esclarecer o que quer que seja, deixando-se devorar, voluntária ou involuntariamente, por pulsões incontroláveis: é assim também em "Viagem a Roma" (Bertrand Brasil), por exemplo. "Desideria" (Paz e Terra, 1986) fala de sexo e radicalismo político, com atração nauseada: um diálogo em tom de conversa neutra, mas no qual as palavras vão virando brasa, não pelos poderes expressivos do estilo, mas pela intensidade daquilo que é contado.

Cinecittà - Moravia era apaixonado por cinema. Deixou centenas de críticas sobre filmes. Suas narrativas foram transpostas para a tela e tornaram-se, algumas delas, obras-primas de diretores maiores. Moravia escreveu "O Desprezo", romance mítico sobre o cinema, adaptado por Godard, com Brigitte Bardot e Fritz Lang, que representa um cineasta. A mulher do roteirista o trai com o produtor. Episódio que poderia ser banal, enfeixa cultura e adultério em relações de força. Faz sobressair a natureza do cinema e seus vínculos nem sempre harmoniosos com a escrita.

Cara-metade - Moravia, formidável escritor e intelectual. Elsa Morante, que foi sua mulher, deixou, por sua vez, um romance dentre os estupendos do século 20. Chama-se "La Storia", passa-se durante a Segunda Guerra Mundial. No avesso de um épico, dois seres frágeis tentam sobreviver em meio a pavorosas ameaças. Nenhum homem seria capaz desse olhar e desse espírito carregados de poderes femininos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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