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Ponto de fuga
Velhos papéis
Para quem nunca leu Alberto Moravia, talvez os
"Contos Dispersos" sejam o melhor começo. O livro é
involuntário. Moravia escrevia com regularidade, na
madrugada, sempre e muito. Não gostava de voltar sobre o escrito, de rever, de arquivar seus próprios textos.
Ao morrer, em 1990, com 83 anos, deixou uma produção vasta. Grande número de contos, publicados em
jornais e revistas, terminaram esquecidos por ele. Não
porque o autor os tivesse desprezado. Parecia-lhe, certamente, melhor escrever outras histórias do que recolher e classificar as antigas.
Esses tesouros abandonados já haviam provocado,
em 1993, uma coletânea póstuma de contos esparsos,
intitulada "Romildo", logo depois traduzida e publicada no Brasil pela editora Bertrand. Essa mesma casa
lançou, há pouco, os "Contos Dispersos". Nada menos
que 69 esplêndidas narrativas, redigidas entre 1927 e
1951 e que, até então, estavam "sepultadas nas páginas
dos jornais e das revistas", como dizem os organizadores Casini e Serra no prefácio.
São histórias sem a mesma homogênea inspiração
dos "Contos Romanos" (ed. Berlendis & Vertecchia,
2003, belo volume com ilustrações de Marco Giannotti). Estes, publicados pelo próprio Moravia, nasceram
com formato bem determinado pelas colunas que ocupavam semanalmente no jornal "Corriere della Sera".
Centram-se em personagens miseráveis e picarescos
rondando na Cidade Eterna do pós-guerra. Pelas épocas e origens diferentes, os "Contos Dispersos" revelam,
ao contrário, tons e climas contrastados. São muitos
"moravias" que saem dali.
Mobile - Moravia, o realista ou neo-realista. Moravia, o
proto-existencialista. Moravia, de estilo neutro, contido, modesto, que afirmava fazer "antiliteratura". Moravia, o pintor desencantado da burguesia, o "grande escritor estático", como disse dele Otto Maria Carpeaux.
Moravia, o homem de esquerda, retratado pelo pincel
de Guttuso. Tudo isso é verdade, sem dúvida. Ou foi
verdade.
"Contos Dispersos" é como um caleidoscópio; as
imagens que ele configura, inesperadas, tendem a abalar os lugares-comuns sobre seu autor e a indicar outros
modos, mais contemporâneos, de percebê-lo.
A frase voluntariamente acinzentada é capaz de recobrir tanto a melancolia poética, metafórica, quanto o
humor cínico e patético, o mesmo que habita os "Contos Romanos". Ele corresponde, na perfeição, ao do
grande cômico Totó, que encarnou personagem de Moravia no cinema.
Há o fascínio pela fronteira tênue entre mania e loucura, que o autor descreve sem explicar, por meio de
uma neutralidade inquieta. Há a enorme atração pela
sexualidade e também pela psicanálise, na verdade incapaz de esclarecer o que quer que seja, deixando-se devorar, voluntária ou involuntariamente, por pulsões incontroláveis: é assim também em "Viagem a Roma"
(Bertrand Brasil), por exemplo. "Desideria" (Paz e Terra, 1986) fala de sexo e radicalismo político, com atração
nauseada: um diálogo em tom de conversa neutra, mas
no qual as palavras vão virando brasa, não pelos poderes expressivos do estilo, mas pela intensidade daquilo
que é contado.
Cinecittà - Moravia era apaixonado por cinema. Deixou centenas de críticas sobre filmes. Suas narrativas foram transpostas para a tela e tornaram-se, algumas delas, obras-primas de diretores maiores. Moravia escreveu "O Desprezo", romance mítico sobre o cinema,
adaptado por Godard, com Brigitte Bardot e Fritz Lang,
que representa um cineasta. A mulher do roteirista o
trai com o produtor. Episódio que poderia ser banal,
enfeixa cultura e adultério em relações de força. Faz sobressair a natureza do cinema e seus vínculos nem sempre harmoniosos com a escrita.
Cara-metade - Moravia, formidável escritor e intelectual. Elsa Morante, que foi sua mulher, deixou, por sua
vez, um romance dentre os estupendos do século 20.
Chama-se "La Storia", passa-se durante a Segunda
Guerra Mundial. No avesso de um épico, dois seres frágeis tentam sobreviver em meio a pavorosas ameaças.
Nenhum homem seria capaz desse olhar e desse espírito carregados de poderes femininos.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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