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POLÍTICA EXTREMA
UM DOS MAIS INFLUENTES HISTORIADORES VIVOS, ERIC HOBSBAWM DIZ QUE A CRISE ECONÔMICA LEVOU À REDESCOBERTA DE MARX E QUE O EQUILÍBRIO MUNDIAL DEPENDE
DAS POTÊNCIAS EMERGENTES
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David Levenson - 24.mai.09/Getty Images
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Eric Hobsbawm, autor de "Era dos Extremos", em festival literário no País de Gales, em 2009
DA "NEW LEFT REVIEW"
Aos 92 anos, o historiador britânico
Eric Hobsbawm
continua um feroz
crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack
Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica,
desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de
superá-la.
"Podemos desejar sucesso a
Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras", diz, na
entrevista abaixo. "A tentativa
dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de
modo muito visível."
Hobsbawm discute ainda
questões globais contemporâneas -como as tentativas de
criar Estados supranacionais, a
xenofobia e o crescimento econômico chinês- à luz do que
expressou em livros como "Era
dos Extremos" e "Tempos Interessantes" (ambos publicados pela Cia. das Letras).
PERGUNTA - "Era dos Extremos"
termina em 1991, com um panorama de avalanche global -o colapso
das esperanças de avanços sociais
da era de ouro [para Hobsbawm,
1949-73]. Quais são as mudanças
mais importantes desde então?
ERIC HOBSBAWM - Vejo quatro
mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro
econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da
Ásia. Isso já estava começando
no Japão nas décadas de 1970 e
80, mas a ascensão da China
desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.
Em segundo lugar, é claro, a
crise mundial do capitalismo,
que vínhamos prevendo, mas
que, mesmo assim, levou muito
tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante da
tentativa dos EUA de exercer a
hegemonia global solo a partir
de 2001.
Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países
em desenvolvimento, como entidade política -os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]-,
não tinha acontecido quando
escrevi "Era dos Extremos".
E, em quinto lugar, a erosão e
o enfraquecimento sistemático
da autoridade dos Estados: dos
Estados nacionais no interior
de seus territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de autoridade de Estado efetiva. Isso se acelerou
em um grau que eu não teria
previsto.
PERGUNTA - O que mais o surpreendeu desde então?
HOBSBAWM - Nunca deixo de
me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas
fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma
estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que
consigo enxergar, ele não tinha
uma estratégia coerente, em
termos racionais.
Em segundo lugar -fato
muito menor, mas significativo-, o ressurgimento da pirataria, algo que já tínhamos em
grande medida esquecido; isso
é novo.
E a terceira coisa, que é ainda
mais local: a derrocada do Partido Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental
[no leste da Índia], algo que eu
realmente não teria previsto.
PERGUNTA - O sr. visualiza uma recomposição política daquilo que foi
no passado a classe trabalhadora?
HOBSBAWM - Não em sua forma
tradicional. Marx [1818-83]
acertou, sem dúvida, quando
previu a formação de grandes
partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não
operaram puramente como
partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para
além de uma classe estreita, o
faziam como partidos do povo,
estruturados em torno de uma
organização inventada pela
classe trabalhadora e voltada a
alcançar os objetivos dela.
Mesmo assim, havia limites à
consciência de classe. No Reino
Unido, o Partido Trabalhista
nunca conquistou mais de 50%
dos votos. O mesmo se aplica à
Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo.
Na França, a esquerda era
baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca,
mas que conseguiu se reforçar
como sucessora essencial da
tradição revolucionária.
O declínio da classe operária
manual na indústria parece, de
fato, ter atingido seu estágio
terminal.
Houve três outras mudanças
negativas importantes. Uma
delas, é claro, é a xenofobia
-que, para a maior parte da
classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, "o socialismo dos
tolos": proteja meu emprego
contra pessoas que estão competindo comigo.
Em segundo lugar, boa parte
da mão de obra e do trabalho
nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como "graus menores e manipulativos" não é
permanente, mas temporária.
Assim, não é fácil enxergá-la
como tendo potencial de ser
organizada.
A terceira e mais importante
mudança é, a meu ver, a divisão
crescente gerada por um novo
critério de classe: a saber, a
aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma
meritocracia, mas ela é medida,
institucionalizada e mediada
por sistemas de ensino.
O que isso fez foi desviar a
consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição
a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais,
pessoas que se erguem como
superiores a nós.
PERGUNTA - Que comparações o sr.
traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?
HOBSBAWM - [A crise de] 1929
não começou com os bancos
-eles só caíram dois anos mais
tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores
desencadeou uma queda na
produção, com um índice muito mais alto de desemprego e
um declínio real muito maior
na produção do que havia
ocorrido em qualquer momento até então.
A depressão atual levou mais
tempo sendo preparada que a
de 1929, que pegou quase todos
de surpresa. Deveria ter sido
claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou
uma instabilidade enorme nas
operações do capitalismo. Até
2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas -a
América Latina nos anos 1990 e
no início da década de 2000; o
Sudeste Asiático e a Rússia.
Parece-me que o verdadeiro
indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso
da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998,
que provou como estava errado
o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto
como tal. Paradoxalmente, a
crise levou vários empresários
e jornalistas a redescobrirem
Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante
sobre uma economia globalizada moderna.
A economia mundial em
1929 era menos global do que é
hoje. Isso exerceu algum efeito,
é claro. A existência da União
Soviética não exerceu efeito
concreto sobre a Depressão,
mas seu efeito ideológico foi
enorme: significava que havia
uma alternativa.
Desde os anos 1990, temos
assistido à ascensão da China e
das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a
depressão atual, na medida em
que esses países vêm ajudando
a manter a economia mundial
muito mais equilibrada do que
ela estaria sem eles.
PERGUNTA - E o que dizer das consequências políticas?
HOBSBAWM - A Depressão de
1929 levou a um desvio avassalador para a direita, com a exceção notável da América do Norte, incluindo o México, e da Escandinávia.
O efeito da crise atual não é
tão nítido. Podemos imaginar
que grandes mudanças políticas devem ocorrer não apenas
nos EUA ou no Ocidente, mas
quase certamente na China.
PERGUNTA - O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?
HOBSBAWM - Não há nenhuma
razão em especial para prever
que a China pare de crescer de
uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao
governo chinês, na medida em
que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o
país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há espaço
enorme para expansão.
É claro que o país ainda enfrenta grandes problemas;
sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho
que as razões reais e ideológicas
para que as pessoas desejem
que a China se mantenha unida
continuam muito fortes.
PERGUNTA - Que avaliação o sr. faz
da administração Obama?
HOBSBAWM - As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem como ele, especialmente em um momento
de crise, que pensaram que certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [1933-45, responsável pelo
New Deal, série de programas
econômicos e sociais contra a
Grande Depressão] fez.
Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os
primeiros cem dias de Roosevelt aos primeiros cem dias de
Obama, o que salta à vista é a
disposição de Roosevelt em
aceitar assessores não oficiais,
em experimentar algo novo,
comparada à insistência de
Obama em se conservar no
centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.
PERGUNTA - A solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?
HOBSBAWM - Pessoalmente,
duvido que ela exista no momento. Seja qual for a solução
possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre
Israel.
PERGUNTA - Existem lugares do
mundo nos quais o sr. acha que projetos positivos e progressistas ainda
estejam vivos ou tenham chances
de ser reativados?
HOBSBAWM - Na América Latina, com certeza, a política e o
discurso público geral ainda
são conduzidos nos velhos termos do iluminismo -liberais,
socialistas, comunistas.
Esses são os lugares onde se
encontram militaristas que falam como socialistas -que
"são" socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um
movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano
Evo] Morales.
Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os
velhos modos políticos ainda
estão disponíveis.
Não estou inteiramente certo quanto à América Central,
embora existam indícios de um
ligeiro "revival" da tradição da
revolução no próprio México
-não que isso vá muito longe,
na medida em que o México já
foi virtualmente integrado à
economia americana.
É possível que projetos progressistas possam renascer na
Índia, devido à força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê após a
independência do país, em
1947]. Mas isso não parece penetrar muito entre as massas.
Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas,
socialistas e comunistas na Europa continua bastante forte.
Desconfio que, em algum momento, a herança do comunismo, por exemplo nos Bálcãs ou
até mesmo em parte da Rússia,
possa se manifestar de maneiras que não podemos prever.
O que vai acontecer na China
eu não sei. Mas não há dúvida
de que eles [os chineses] estão
pensando em termos diferentes, não em termos maoístas ou
marxistas modificados.
PERGUNTA - O sr. sempre foi crítico
do nacionalismo como força política. Também se manifestou contra
violações de soberania nacional cometidas em nome de intervenções
humanitárias. Após a falência do internacionalismo nascido do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?
HOBSBAWM - Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos direitos humanos,
não tem muito a ver com internacionalismo. É indicativo ou
de um imperialismo renascido,
que encontra nele uma desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados
-podem ser desculpas absolutamente sinceras-, ou então, o
que é mais perigoso, é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região
que dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.
O internacionalismo, que é a
alternativa ao nacionalismo, é
uma coisa espinhosa. Ou é um
slogan politicamente vazio, como foi, concretamente falando,
no movimento trabalhista internacional -não queria dizer
nada específico-, ou é uma
maneira de assegurar uniformidade para organizações centralizadas e poderosas como a
Igreja Católica ou a Internacional Comunista.
O internacionalismo significava que, como católico, você
acreditava nos mesmos dogmas e participava das mesmas
práticas, não importa quem você fosse ou onde vivesse.
O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos comunistas. Não é realmente isso o
que queríamos dizer com "internacionalismo".
O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são
tomadas todas as decisões políticas, domésticas e externas.
É possível que o islã missionário e fundamentalista constitua uma exceção a essa regra,
abarcando Estados, mas isso
ainda não foi demonstrado
concretamente.
PERGUNTA - Há obstáculos inerentes a qualquer tentativa de extrapolar as fronteiras do Estado-nação?
HOBSBAWM - Economicamente
e na maioria dos outros aspectos -inclusive culturalmente,
até certo ponto-, a revolução
das comunicações criou um
mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de
decisão que se transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro, movimentos de ideias, comunicações e
pessoas que são mais facilmente transnacionais do que antes.
Na política, contudo, não se
vê nenhum sinal de que isso esteja acontecendo, e é essa a
contradição básica no momento. Uma das razões pelas quais
não vem acontecendo é que, no
século 20, a política foi democratizada em grau muito grande -a massa da população comum se envolveu nela. Para essa massa, o Estado é essencial
para suas operações cotidianas
normais e para suas possibilidades de vida.
Tentativas de fragmentar o
Estado internamente, pela descentralização, foram empreendidas, em sua maioria nos últimos 30 ou 40 anos, e algumas
delas não deixaram de ter algum sucesso -na Alemanha,
com certeza, a descentralização
vem tendo alguma medida de
sucesso e, na Itália, a regionalização vem sendo benéfica.
Mas as tentativas de criar Estados supranacionais não têm
funcionado. A União Europeia
é o exemplo mais óbvio disso.
Ela foi prejudicada, até certo
ponto, pelo fato de seus fundadores terem pensado precisamente em termos de um Superestado análogo a um Estado
nacional, apenas maior -sendo
que essa não era uma possibilidade, creio, e hoje com certeza
não é.
PERGUNTA - O nacionalismo foi
uma das grandes forças motrizes da
política no século 19 e em boa parte
do século 20. Que o sr. diz da situação atual?
HOBSBAWM - Não há dúvida alguma de que o nacionalismo
foi, em grande medida, parte do
processo de formação dos Estados modernos, que exigiu uma
forma de legitimação diferente
da do Estado tradicional teocrático ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a
criação de Estados maiores, e
me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito importante.
Um exemplo típico foi o da
Revolução Francesa, na qual,
em 1790, pessoas apareceram
dizendo: "Não somos mais delfineses ou sulistas -somos todos franceses".
Em uma etapa posterior, dos
anos 1870 em diante, vemos
movimentos de grupos no interior desses Estados impulsionando a criação de seus Estados independentes.
Era reconhecido, mesmo que
não pelos próprios nacionalistas, que nenhum desses novos
Estados-nações era, de fato, étnica ou linguisticamente homogêneo.
Mas, depois da Segunda
Guerra [1939-45], os pontos
fracos das situações existentes
foram enfrentados, não apenas
pelos vermelhos, mas por todos, pela criação proposital e
forçada da homogeneidade étnica. Isso provocou uma quantidade enorme de sofrimento e
crueldade e, no longo prazo,
também não funcionou.
Não posso deixar de pensar
que a função dos Estados separatistas pequenos, que se multiplicaram tremendamente
desde 1945, mudou. Para começo de conversa, eles são reconhecidos como existentes.
Antes da Segunda Guerra, os
Miniestados -como Andorra,
Luxemburgo e todos os outros- nem sequer eram vistos
como parte do sistema internacional, exceto pelos colecionadores de selos. A ideia de que
tudo, até a Cidade do Vaticano,
hoje é um Estado, potencialmente membro das Nações
Unidas, é nova.
A função histórica de criar
uma nação como Estado-nação
deixou de ser a base do nacionalismo. Pode-se dizer que não
é mais um slogan muito convincente.
Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez
mais importante. Quanto mais
a política foi democratizada,
maior foi o potencial para isso.
Trata-se de algo muito mais
cultural que político -basta
pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos anos-, mas nem por isso
menos perigoso.
PERGUNTA - O fascismo não incluía
essas formas de xenofobia?
HOBSBAWM - O fascismo ainda
foi, até certo ponto, parte da investida para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi um grande
passo à frente na conversão de
calabreses e úmbrios em italianos; mesmo na Alemanha, foi
apenas em 1934 que os alemães
puderam ser definidos como
alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios, francos ou
saxões.
É verdade que os fascismos
alemão e europeu central e
oriental foram acirradamente
contrários a outsiders -judeus,
em grande medida, mas não
apenas eles.
E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra
os instintos xenofóbicos.
PERGUNTA - As dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo atuam hoje nas margens da política mundial?
HOBSBAWM - Sim, embora existam regiões em que o nacionalismo causou danos enormes,
como no sudeste da Europa.
Ainda é verdade, é evidente,
que o nacionalismo -ou o patriotismo, ou a identificação
com um povo específico, que
não precisa necessariamente
ser definido por critérios étnicos- seja um enorme fator de
legitimação dos governos.
Isso é claramente o caso na
China. Um dos problemas da
Índia, hoje, é que não existe nada exatamente assim por lá.
PERGUNTA - Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea hoje? Haverá a emergência
gradual de outro caldeirão cultural
na Europa, não dessemelhante ao
americano?
HOBSBAWM - Mas o caldeirão
cultural nos EUA deixou de sê-lo desde os anos 1960. Ademais,
no final do século 20, a migração já era algo realmente muito
diferente das migrações de períodos anteriores, em grande
medida porque, ao emigrar, as
pessoas já não rompem os vínculos com o passado no mesmo
grau em que o faziam antes.
É possível continuar a ser
guatemalteco mesmo vivendo
nos EUA. Também há situações como as da UE, nas quais,
concretamente, a imigração
não gera a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem
para o Reino Unido não é visto
como nada além de um polonês
que vem trabalhar no país.
Isso é claramente novo e
muito diferente da experiência
de pessoas da minha geração,
por exemplo -a geração dos
emigrados políticos, não que eu
tenha sido um-, na qual nossa
família era britânica, porém
culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.
Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da assimilação -que os cidadãos de um país particular
devem comportar-se de determinada maneira e gozar de determinados direitos, que esses
comportamentos e direitos devem defini-los e que isso não
deve ser enfraquecido por argumentos multiculturais.
A França integrou, apesar de
tudo, mais ou menos tantos de
seus imigrantes estrangeiros
quanto os EUA, relativamente
falando, e, mesmo assim, o relacionamento entre os locais e os
ex-imigrantes é quase certamente melhor lá. Isso acontece
porque os valores da República
Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não
fazem nenhuma concessão pública real.
Seja o que for que você faça
no âmbito pessoal -era também esse o caso nos EUA no século 19-, publicamente esse é
um país que fala francês. A dificuldade real não será tanto com
os imigrantes quanto com os
locais. É em lugares como Itália
e Escandinávia, que não tinham tradições xenofóbicas
prévias, que a nova imigração
vem criando problemas sérios.
PERGUNTA - Hoje é amplamente
disseminada a ideia de que a religião tenha retornado como força
imensamente poderosa. O sr. vê isso
como um fenômeno fundamental
ou mais passageiro?
HOBSBAWM - Está claro que a
religião -entendida como a ritualização da vida, a crença em
espíritos ou entidades não materiais que influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum entre comunidades- está tão amplamente presente ao longo da
história que seria um equívoco
enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja destinado a desaparecer, pelo menos
entre os pobres e fracos, que
provavelmente sentem mais
necessidade de seu consolo e
também de suas potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.
Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem concretamente qualquer
coisa que corresponda ao que
nós consideraríamos ser religião. Eles demonstram que isso
é possível, mas acho que um
dos erros do movimento socialista e comunista tradicional foi
optar pela extirpação violenta
da religião em épocas em que
poderia ter sido melhor não o
fazer.
É verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso público; e, nessa
medida, a secularização vem
sendo um fenômeno global,
embora apenas em algumas
partes do mundo ela tenha enfraquecido gravemente a religião organizada.
Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de
hoje existirem duas linguagens
do discurso religioso gera uma
espécie de esquizofrenia, algo
que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os judeus fundamentalistas na Cisjordânia -eles acreditam em algo que é evidentemente tolice, mas trabalham
como especialistas nisso.
O declínio das ideologias do
iluminismo deixou um espaço
político muito maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo. Mas
muitas religiões estão claramente em declínio.
O catolicismo está lutando
arduamente, mesmo na América Latina, contra a ascensão de
seitas evangélicas protestantes,
e tenho certeza de que está se
mantendo na África apenas
graças a concessões aos hábitos
e costumes sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no
século 19.
As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas
não está claro até que ponto são
mais que uma minoria entre os
setores sociais com mobilidade
ascendente, como era o caso
antigamente com os não conformistas na Inglaterra.
A única exceção é o islã, que
vem continuando a se expandir
sem nenhuma atividade missionária efetiva nos últimos
dois séculos.
Parece-me que o islã possui
grandes trunfos que favorecem
sua expansão contínua -em
grande medida, porque confere
às pessoas pobres o sentimento
de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os muçulmanos são iguais.
PERGUNTA - Não se poderia dizer o
mesmo do cristianismo?
HOBSBAWM - Mas um cristão
não crê que vale tanto quanto
qualquer outro cristão. Duvido
que os cristãos negros acreditem que valham tanto quanto
os colonizadores cristãos, enquanto alguns muçulmanos
negros acreditam nisso, sim. A
estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento militante é
mais forte no islã.
Recordo-me de ter lido que
os mercadores de escravos no
Brasil deixaram de importar
escravos muçulmanos porque
eles insistiam em rebelar-se
sempre. Esse apelo encerra perigos consideráveis -em certa
medida, o islã deixa os pobres
menos receptivos a outros apelos por igualdade.
Os progressistas no mundo
muçulmano sabiam desde o
início que não haveria maneira
de afastar as massas do islã;
mesmo na Turquia, tiveram
que encontrar alguma forma de
convivência -aliás, esse foi
provavelmente o único lugar
onde isso foi feito com êxito.
PERGUNTA - A ciência foi uma parte
central da cultura da esquerda antes
da Segunda Guerra. O sr. acha que o
destaque crescente das questões
ambientais deverá reaproximar a
ciência da política radical?
HOBSBAWM - Tenho certeza de
que os movimentos radicais
vão se interessar pela ciência. O
ambiente e outras preocupações geram razões fundamentadas para combater a fuga da
ciência e da abordagem racional aos problemas, fuga que se
tornou bastante ampla a partir
dos anos 1970 e 80. Mas, com
relação aos próprios cientistas,
não creio que isso vá acontecer.
Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve
os cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente falando, eles, na maioria
dos casos, têm sido apolíticos
ou seguiram a política padrão
de sua classe.
PERGUNTA - Em "Tempos Interessantes" [publicado em 2002], o sr.
expressou reservas ao que eram,
na época, modismos históricos recentes. O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente
inalterado?
HOBSBAWM - Minha geração de
historiadores, que de modo geral transformou o ensino da
história, além de muitas outras
coisas, procurou essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que
datava dos anos 1890.
A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente.
Dávamos como certo que estávamos falando de algo real: de
realidades objetivas, embora,
desde Marx e a sociologia do
conhecimento, soubéssemos
que as pessoas não registram a
verdade simplesmente como
ela é.
Mas o que era realmente interessante eram as transformações sociais. A Grande Depressão foi instrumental nesse aspecto, porque reapresentou o
papel exercido por grandes crises nas transformações históricas -a crise do século 14, a
transição ao capitalismo.
Éramos um grupo que procurava resolver problemas, que se
preocupava com as grandes
questões. Havia outras coisas
cuja importância diminuíamos: éramos tão contrários à
história tradicionalista, à história dos governantes e figuras
importantes, ou mesmo à história das ideias, que rejeitávamos isso tudo.
Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em 1979-80 a
[revista de história] "Past &
Present" publicou uma troca de
ideias entre Lawrence Stone e
mim sobre o "revival da narrativa" -"o que está acontecendo
com as grandes perguntas "por
quê'?".
Os historiadores oriundos de
1968 não se interessavam mais
pelas grandes perguntas -pensavam que todas já tinham sido
respondidas. Estavam muito
mais interessados nos aspectos
voluntários ou pessoais. O [periódico] "History Workshop"
foi um desenvolvimento tardio
desse tipo.
Por outro lado, houve alguns
avanços positivos. O mais positivo destes foi a história cultural, que todos nós, inegavelmente, tínhamos deixado de lado. Não prestamos atenção suficiente à história do modo como ela de fato se apresenta a
seus atores.
PERGUNTA - Se o sr. tivesse que escolher tópicos ou campos ainda
inexplorados e que representam desafios importantes para historiadores futuros, quais seriam?
HOBSBAWM - O grande problema é um problema muito geral.
Segundo padrões paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade espantosa, mas o ritmo
das transformações tem variado tremendamente.
Os marxistas focaram, com
razão, as transformações no
modo de produção e em suas
relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Contudo, se pensarmos em
termos de como "os homens fazem sua própria história", a
grande questão é a seguinte:
historicamente, comunidades
e sistemas sociais buscaram a
estabilização e a reprodução,
criando mecanismos para prevenir-se contra saltos perturbadores no desconhecido. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a
transformações dinâmicas se
adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Os historiadores marxistas
poderiam beneficiar-se da pesquisa das operações dessa contradição fundamental entre os
mecanismos que promovem
transformações e aqueles que
são voltados a opor resistência
a elas.
Esta entrevista foi publicada originalmente na
edição de janeiro/fevereiro da revista britânica
"New Left Review".
Tradução de Clara Allain.
FOLHA ONLINE
Leia a íntegra da
entrevista
www.folha.com.br/101031
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