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+(L)iteratura
Do outro lado do ESPELHO
Indícios de patologias permeiam a vida e a obra do britânico Lewis Carroll, autor de "Alice no País das Maravilhas"
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MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Charles Lutwidge
Dodgson (1832-98),
mais conhecido pelo
pseudônimo de Lewis Carroll, faz parte
da história da literatura, sobretudo graças ao monumental
"Alice no País das Maravilhas",
que podemos considerar a obra
precursora do realismo mágico
e que inspirou obras similares,
peças teatrais, filmes, o mais
recente dirigido pelo original
Tim Burton [que estreia no
Brasil na sexta-feira].
Mas Dodgson também tem
sido objeto de vários estudos
médicos e psicológicos, baseados tanto em sua peculiar existência como em seu trabalho
ficcional. De uma conservadora família anglicana, à qual não
faltavam clérigos e militares, o
jovem Dodgson, que as fotos
mostram como um homem bonito, simpático, dedicou-se inicialmente à matemática, lecionando no famoso Christ
Church College, de Oxford, cidade em que, a propósito, a sua
memória é muito evocada.
Era um homem culto, gentil,
mas não livre de problemas: como outro grande escritor, o seu
contemporâneo Machado de
Assis, gaguejava, coisa que o
mortificava e que rotulava como sua "hesitação"; o pássaro
Dodo, que aparece no livro, traduziria a dificuldade que ele tinha em dizer seu sobrenome
("Do-Do-Dodgson"). Começou
também a publicar e tornou-se
razoavelmente conhecido, já
usando o pseudônimo famoso.
Em 1856, um novo deão,
Henry Liddell, tomou posse no
Christ Church. Dodgson tornou-se amigo da família Liddell, sobretudo das três filhas, e
sobretudo de Alice -que, segundo ele, não foi o modelo para a personagem do livro; de
qualquer modo a história nasceu num passeio de barco com
as garotas.
Ilustrado pelo grande sir
John Tenniel, o livro se transformaria num sucesso retumbante, com uma continuação
-"Through the Looking-Glass
and What Alice Found There",
em geral traduzida como "Alice
no País do Espelho".
Mais ou menos na mesma
época, Dodgson começou a se
dedicar à fotografia, então em
seus começos. Ele gostava de
fotografar meninas, às vezes
em poses sedutoras, e, nuns
poucos casos comprovados,
nuas. Daí nasceu a suspeita de
pedofilia que durante décadas
pesou sobre o escritor.
Vladimir Nabokov chegou a
compará-lo a seu personagem
Humbert Humbert, que, em
"Lolita", se apaixona por uma
ninfeta. Havia um agravante: a
Inglaterra vitoriana, uma sociedade moralmente muito repressiva, gerou casos de aberrações e até crimes sexuais,
Jack, o Estripador, sendo disso
um exemplo.
Proibição
No caso de Dodgson, há detalhes agravantes: a partir de
1863, o casal Liddell não mais
permitiu que o professor visse
as crianças. E, supostamente
por causa de uma consciência
culpada, ele nunca foi ordenado ministro da Igreja Anglicana, como era de esperar com alguém que lecionava no Christ
Church. Nisto contou com a
aprovação do deão Liddell, que
lhe permitiu continuar lecionando [também publicou livros
de matemática, celebrizando-se pela criação de quebra-cabeças lógicos].
Os estudos modernos a respeito da controvérsia são, digamos, mais tolerantes. Dodgson
certamente tinha dificuldades
com mulheres adultas (no mínimo falta de interesse por
elas). Mas daí à pedofilia vai um
passo grande. Mesmo a suposta
patologia vitoriana é posta em
questão; parece que as fotos
de crianças eram valorizadas
como expressão da inocência
infantil. E, nas fotos de Dodgson, as crianças parecem inteiramente à vontade, sem mostrar temor diante de um suposto assédio.
Um outro aspecto interessante, do ponto de vista médico, é a chamada síndrome "Alice no País das Maravilhas". Reporta-se àquele episódio em
que Alice cresce e encolhe, o
que se traduz em macropsia e
micropsia, a visão dos objetos
subitamente aumentados ou
diminuídos em tamanho, uma
penosa sensação que pode
ocorrer em casos de enxaqueca,
problema que, como João
Cabral de Melo Neto, Dodgson
tinha.
Outros autores sugeriram
que o escritor talvez sofresse de
epilepsia do lobo temporal, que
também pode dar esses sintomas. Dessa doença sofria Machado de Assis, e há disso evidências em sua obra.
Por exemplo, a cena alucinatória em
"Memórias Póstumas de Brás
Cubas", em que o protagonista,
num delírio alucinatório, percorre os séculos transportado
por um hipopótamo que, no final, "encolhe" e é apenas um
gatinho.
Escritores não precisam ser
necessariamente criaturas saudáveis. Mesmo porque conseguem, graças ao talento, transformar em fonte de inspiração
as mazelas médicas e psi-
cológicas que a eles, como a outras pessoas, perturbam e atrapalham.
MOACYR SCLIAR é médico e escritor, ganhador
do 51º Prêmio Jabuti, nas categorias ficção e romance, por "Manual da Paixão Solitária" (Companhia das Letras).
moacyr.scliar@uol.com.br
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