São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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"Vai morrer!"

Empolgado e falando como uma metralhadora, um candidato relata cenas de guerra vistas no canal Discovery. "Meu irmão, troca de tiros no Iraque, o tiro comendo! Os caras atrás do tanque, dando de fuzil, tiro pra caralho! O Blackhawk no ar, tututututu, maior barulheira, maluco, alucinante... Fico até arrepiado, puta que o pariu! O cara com uma 50 [calibre de arma], dando tiro, com aqueles óculos grandes e olhões arregalados... Queria estar lá!"
Tal é a empolgação que os colegas, espremidos na clínica do exame laboratorial, ficam em silêncio. "Esse é vibrador mesmo!", comentou um. "Maluco, tenho ódio de vagabundo! Já odiava antes e agora odeio ainda mais! Quero ser do Bope."
A violência e o medo da morte já estão infundidos nos recrutas, a maioria com parentes ou amigos na corporação.
Durante o curso fica a impressão de que oficialmente a PM não tolera corrupção e desvio para o crime, mas admite a violência, inclusive letal, contra criminosos. "Troca tiros com o vagabundo na favela... Ele se rende. Vai prender? Eu vou matar!" Outro concorda. "Claro que vou matar. O cara baleou companheiro, te deu tiro, aí fica encurralado, se rende: "Perdi'? "Perdi" o caralho! Vai morrer!"
Eu argumento que é ilegal, que a função da polícia é prender. "Não matar é criar um animal na jaula, que vai te atacar. Não conhece a Justiça? O cara fica dois anos preso, aí vai para a rua. Se ele te vir, vai te matar. É ilegal, mas é assim."
O primeiro bate no meu ombro. "Se você entrar na PM com essa de "prender", é bom rezar muito! Direitos humanos para quem é humano!"
Pergunto a um se terá arma. "Claro, vai matar com a arma da PM?" Ao fim de uma aula, outro comenta: "Vai matar com muita vontade? Eu vou! A cada bandido que matar, vou agradecer a Deus: "Obrigado, Deus, por mandar esse bandido'".
As polícias do Rio mataram 1.330 pessoas em 2007. A média é de 41,6 civis mortos em confronto por cada policial tombado. Para os instrutores, é a realidade do confronto no Rio. "Tiroteio. Cerca o criminoso, e acaba a munição dele. Metralhou. Isso é corriqueiro. Também, fazer o quê? Levar preso? Não estou falando isso [que se deve matar]... Cada um sabe de si."
As aulas oscilam entre instruções oficiais, corretas, e comentários pessoais. "Só pode usar a arma em legítima defesa. Não pode atirar pelas costas. É absurdo? É. Mas não pode. O uso da força deve ser moderado e proporcional. Se ficar em cima da lei, não tem risco." Um aluno comenta: "O complicado é grupo de direitos humanos."

"Tropa de Elite"
Perguntam se cenas de assassinato como as do "Tropa de Elite" acontecem.
"O Bope é PM como a gente. Dá tiro nas costas de alguém e deixa ser pego... Fica na mesma cela do PM corrupto. Filme é filme. Se fez errado e descobrem, será punido. Mas têm dúvidas de que fazem isso todo dia? Vocês vão aprender na rua: deu tiro pelas costas, pega a arma, põe na mão do cara, dá um tirinho e alega legítima defesa. Talvez eu fizesse isso no calor da emoção, filho. Mas isso é na rua, aqui não é lugar para aprender isso. Arma de fogo é para legítima defesa sua ou de terceiros. Só. Massifica isso", diz o instrutor.
O perigo antecede a carreira. Na seleção, um rapaz levanta a camisa e exibe enorme cicatriz, cortando seu tórax e abdome até abaixo do umbigo. Lembra aquelas de desenho animado, os pontos desenhados na pele.
Com sorriso sinistro, conta como quase morreu após ser levado por bandidos a uma favela, com amigo PM. "De repente o traficante atirou no meu amigo. "Meti o pé", corri que nem maluco, e os caras atiraram de fuzil. Senti duas porradas, mas continuei, na adrenalina. Só parei lá embaixo. Tinha levado um tiro nas costas e um no braço esquerdo." Passou três meses internado. Todos ouvem o relato estáticos. "Mas tu não guardou (sic) a bala?", pergunta um. "Para quê? Guardei a cicatriz. Ficaram as marcas e o ódio no coração. Quem eu pegar, não vou aliviar."


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