São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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4. De arma na mão

Com o aumento da violência, a PM adotou procedimentos mais agressivos de abordagem. A técnica é usada para suplantar a surpresa: as abordagens devem ser na posição "caçador" (arma apontada) e em superioridade numérica -o que é freqüentemente desrespeitado.
"Se não diminuir a margem de risco, pode não voltar para casa. O Rio é o Estado mais perigoso do Brasil, não tem jeito. É o único em guerra. Se não estiver bem preparado, vai cair", diz um aspirante. "Arma é sempre apontada. É grosseiro? Pode ser. Mas quem senta a bunda na viatura 12 horas correndo risco é o PM. Sem deixar de ser cortês, mas vai arriscar sua carcaça de madrugada? O Rio não é Minas Gerais", diz outro.
Pergunto a um sargento se pode pôr o cano do fuzil para fora da janela do carro, como é comum ver.
"No Rio de hoje, o fuzil tem de estar à mão. Bota ali, bico pra fora. Em certas áreas de risco, é bico pra fora e porta aberta: já é rotina normal policial. A população às vezes fica assustada, mas não vai dar mole." Descubro que perseguições, com tiroteios, são proibidas. "Estamos cansados de ver perseguição, mas é errado. É para acompanhar e fazer o cerco", diz o sargento.
A PM também aboliu o termo "suspeito", para evitar discriminação; usa "atitude suspeita". O recruta é orientado a ser cauteloso e seguir o "Decálogo do PM" (leia na pág. 7).
"Se encostar na favela em frente ao beco, nem sai do carro [morre antes]. Acabou a época do "cada um vai a um beco". Não vai à culha [de qualquer maneira] que vai se arrebentar. Se tiver de aprender uma coisa, aprenda a técnica."
Os instrutores atribuem mortes à desatenção e à inobservância de normas. "Outro dia morreram dois no carro. Duas horas da manhã, senta para descansar as pernas, quem faz a segurança de quem? Vão os dois "pro saco"."

Educação e cortesia
Uma frase recorrente é o nono item do decálogo: "Seja educado e cortês no trato. Atitude não é sinônimo de grosseria".
A corporação tenta mudar a imagem de truculência. "Vai dar tapa na cara na blitz, gritar com o cara? Mandar deitar no chão? Precisa? Vai botar o fuzil na cara? Mas vai apontar a arma. É desagradável? Pode ser, mas o mais importante é a segurança do PM."
Um aluno pergunta se deve atirar em quem foge de abordagem. "Claro que não. Tem gente que se assusta. A PM deveria ter "jacarés", para furar pneus, mas não tem. Não pode atirar... Corre atrás. Se atirar, vai explicar! No Complexo do Alemão, sete ou oito mortos tinham tiros pelas costas. Vai explicar ao juiz depois!?"
Somos orientados ao "uso moderado da força". "Posso bater?" Pode, mas bate direito! Vocês terão aula de defesa pessoal [tivemos apenas uma no primeiro mês]. O bastão policial é para atingir perna, braço, bunda."
Nosso primeiro contato com armas é com o revólver 38, e a pistola 380, arma do PM, que aprendemos a desmontar. O instrutor é competidor de "tiro prático". "Mesmo não sendo militar tenho muito a passar; se tirarem proveito, sairão atirando bem. A realidade do tiro na PM não é boa, é ruim. Cansei de ver "polícia" com cordão de ouro, carro do ano, a loira mais bonita da rua, Glock "fria" na cintura: o cara dá 19 tiros, e o outro continua correndo. Erra nove de dez tiros parado. De que adianta? É melhor ter um 38 de seis tiros e acertar o alvo."
A PM é pobre, e isso se reflete na falta de estrutura durante o treinamento. Usa-se munição recarregada, mais barata e "passível de problemas", admite o instrutor.
As armas são velhas, e os tiros, poucos. "Nos batalhões, dificilmente vão ver armas quebradas, porque têm pouco uso; aqui tem muita. Terão o prazer de ver uma quebrar", disse o instrutor.
"Há armas imundas. O PM antigo vai te ver limpando a arma e falar: "Tá de babacada!" Não fazem nada disso. Vai ao Bope para ver se não limpam! É instrumento de trabalho e segurança, como a marreta é do pedreiro. Vê as viaturas, como estão? As armas são iguais. O Estado tem culpa? O PM tem muito mais. Se a arma não funciona, não tem volta, já era."
O instrutor explica uma possível razão para os 234 casos (16 fatais) de bala perdida no Rio, de janeiro a setembro de 2007: "A munição atravessa parede e pega onde não deve".
O professor, porém, pondera. "É muito bonito falar na sala de aula. Na situação real, usa-se o poder de fogo para não morrer. Me disseram uma vez: "Se não déssemos tiro à culha, não sairíamos vivos. De todos os becos saía traçante [tiro com rastro luminoso]. Parecia casa de fogos explodindo... O reboco caindo na gente."
Em sua opinião, o revólver é uma boa arma, mas pouco adequada para o Rio, por ter apenas seis projéteis e ser difícil de recarregar, em tiroteio.
"Não tem essa história de que, "se não resolver com seis, não resolve mais". Se não resolver com seis, resolvo com 17 (pistola). Se não resolvo com 17, resolvo com 34, com 68... Vou dar tiro até acabar. Morrer é a última coisa. É o que faz a diferença do PM do Bope", disse, tirando três carregadores de pistola dos bolsos e dois da perna.

Passividade
Para ele, é inconcebível o PM andar desarmado. "A situação é essa pela passividade de todos. Se todo mundo com porte andasse armado, o Rio não estaria como está. Somando policiais a militares, seriam 200 mil armados. Não iriam se aventurar a fazer assaltinho em sinal. O país não tem cultura de arma. Vi reportagem sobre uma família em Nova Orleans [EUA]: marido, mulher e filho de 12 anos com escopeta na mão. Vai entrar na casa? Aqui, ó!"


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