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10. Desistência
Por volta de 10h do dia 25 de
janeiro, fui à companhia pedir
dispensa. Apresentei-me a dois
sargentos -um homem e uma
mulher: "Aluno CFSd Gomide,
primeiro pelotão: permissão
para falar". "Com licença, gostaria de pedir baixa."
"Desistir? Você quer ir embora?", perguntou a sargenteante (serviço administrativo), conhecida pelo rigor (na véspera, entregara-lhe um documento. Sem me olhar, envolveu com caneta vermelha a palavra "atenciosamente" e mandou reescrever as duas vias.
"Não existe isso no militarismo." Deu uma bronca em um
aluno que pedira dois dias de
dispensa para casar. "Aqui tem
regulamento! São oito dias!").
"Quer ir embora, aluno?",
perguntou o outro, careca e
brincalhão, surpreso.
"Sim, senhor."
"Tem certeza?"
O tom dos dois era de atenção e respeito. Queriam me ajudar e me convencer a ficar.
"Sim, senhora."
"Pensa bem... Mas por quê?",
insistiram.
"Tenho uma proposta de trabalho melhor."
"Por que não espera publicar
seu nome incorporado e tranca
matrícula? Pode voltar em até
dois anos... Deus queira que isso não aconteça, não vai acontecer, mas vai que o trabalho aí
fora dá para trás, você vai ficar
com o quê?... Vai fazer o quê
com o mês que ficou aqui? Espera publicar e aí tranca. Não é
melhor assim?", perguntou o
sargento, com boa vontade.
"Sim, senhor."
"Então, vai lá, sai daqui, seu
narigudo!", disse, rindo.
Voltei ao pelotão e fomos distribuídos pelo quartel para faxina. Coube-me recolher lixeiras de plástico, subir e jogar o lixo na caçamba de um caminhão. Recolhemos 13. De algumas, escorria chorume. "Você
está fazendo o quê aqui? Vem
da zona sul, podia estar na praia
agora. Nunca viu lixo de perto,
hein? A empregada é que limpava...", ria um colega.
Quando voltei à sargenteante, um aluno esperava para ser
atendido. "Deixa eu resolver a
situação do "defunto" aqui... Você sabe que agora é defunto,
né?", e apontou um quadro-negro. Sob o título "Cemitério",
havia o desenho de um crânio, e
os números de quatro desistentes do curso, ao lado de uma
cruz, simbolizando a "morte".
Eu era o quinto. Um ex-fuzileiro naval, forte e com quase
dois metros de altura, acompanhou-me até o recrutamento.
Sem computadores
Reparei que a sala tinha infiltrações nas paredes e no teto,
rebocos caindo e teias de aranha. Vislumbrei uma barata na
pilha de documentos e três cadeiras quebradas -o estofamento estava rasgado. Ouvi a
voz de uma tenente, irritada.
"Como tantas pessoas ficaram
nessa imundície? Me admira a
coronel ficar tanto tempo nessa
podridão!"
Sem computadores, fiz a declaração de desistência de próprio punho. Um residente de
enfermagem, aprovado no concurso para a segunda turma,
entrou na sala e perguntou se
poderia começar o curso e trancar matrícula, para concluir a
especialização. "Quero muito
ser policial", explicou. "É querer muito, você é louco, mesmo", riu uma sargento.
O rapaz vai embora. Termino
a declaração e recebo meus documentos de volta. "Viu lá, os
PMs da cerveja? Que vergonha!
Aí a gente fala que é PM e todo
mundo olha torto, acha que é
safado. Chega com carro novo,
comprado em mil prestações, já
olham: "Ladrão'!", comenta a
policial. "Boa sorte!"
De volta à companhia, passei
por seis colegas de pelotão, que
limpavam a área perto do campo. "É sério mesmo, cara, vai
sair?" Deram-me um abraço e
falaram para não perdermos
contato. Na companhia, despedi-me dos dois sargentos.
"Vai com Deus e sucesso",
desejou a sargenteante, batendo de leve em meu ombro.
"Meu amigo, boa sorte, vai
com Deus! Lembre só das coisas boas da PM, esqueça as
ruins. Não fale mal da PM, fale
só as coisas boas, as ruins esqueça!", disse o sargento careca, sorrindo, como sempre. Eu
estava em posição de sentido.
"Pára com isso, você não é mais
militar, não!"
"Defunto" encomendado,
senti-me livre. Durante 23 dias,
vivi como PM. Quando saí da
companhia, pelo atalho antes
proibido, restavam 454 alunos
na turma do Curso de Formação de Soldados 2008.
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