São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

10. Desistência

Por volta de 10h do dia 25 de janeiro, fui à companhia pedir dispensa. Apresentei-me a dois sargentos -um homem e uma mulher: "Aluno CFSd Gomide, primeiro pelotão: permissão para falar". "Com licença, gostaria de pedir baixa."
"Desistir? Você quer ir embora?", perguntou a sargenteante (serviço administrativo), conhecida pelo rigor (na véspera, entregara-lhe um documento. Sem me olhar, envolveu com caneta vermelha a palavra "atenciosamente" e mandou reescrever as duas vias. "Não existe isso no militarismo." Deu uma bronca em um aluno que pedira dois dias de dispensa para casar. "Aqui tem regulamento! São oito dias!").
"Quer ir embora, aluno?", perguntou o outro, careca e brincalhão, surpreso.
"Sim, senhor."
"Tem certeza?"
O tom dos dois era de atenção e respeito. Queriam me ajudar e me convencer a ficar.
"Sim, senhora."
"Pensa bem... Mas por quê?", insistiram.
"Tenho uma proposta de trabalho melhor."
"Por que não espera publicar seu nome incorporado e tranca matrícula? Pode voltar em até dois anos... Deus queira que isso não aconteça, não vai acontecer, mas vai que o trabalho aí fora dá para trás, você vai ficar com o quê?... Vai fazer o quê com o mês que ficou aqui? Espera publicar e aí tranca. Não é melhor assim?", perguntou o sargento, com boa vontade. "Sim, senhor."
"Então, vai lá, sai daqui, seu narigudo!", disse, rindo.
Voltei ao pelotão e fomos distribuídos pelo quartel para faxina. Coube-me recolher lixeiras de plástico, subir e jogar o lixo na caçamba de um caminhão. Recolhemos 13. De algumas, escorria chorume. "Você está fazendo o quê aqui? Vem da zona sul, podia estar na praia agora. Nunca viu lixo de perto, hein? A empregada é que limpava...", ria um colega.
Quando voltei à sargenteante, um aluno esperava para ser atendido. "Deixa eu resolver a situação do "defunto" aqui... Você sabe que agora é defunto, né?", e apontou um quadro-negro. Sob o título "Cemitério", havia o desenho de um crânio, e os números de quatro desistentes do curso, ao lado de uma cruz, simbolizando a "morte".
Eu era o quinto. Um ex-fuzileiro naval, forte e com quase dois metros de altura, acompanhou-me até o recrutamento.

Sem computadores
Reparei que a sala tinha infiltrações nas paredes e no teto, rebocos caindo e teias de aranha. Vislumbrei uma barata na pilha de documentos e três cadeiras quebradas -o estofamento estava rasgado. Ouvi a voz de uma tenente, irritada. "Como tantas pessoas ficaram nessa imundície? Me admira a coronel ficar tanto tempo nessa podridão!"
Sem computadores, fiz a declaração de desistência de próprio punho. Um residente de enfermagem, aprovado no concurso para a segunda turma, entrou na sala e perguntou se poderia começar o curso e trancar matrícula, para concluir a especialização. "Quero muito ser policial", explicou. "É querer muito, você é louco, mesmo", riu uma sargento.
O rapaz vai embora. Termino a declaração e recebo meus documentos de volta. "Viu lá, os PMs da cerveja? Que vergonha! Aí a gente fala que é PM e todo mundo olha torto, acha que é safado. Chega com carro novo, comprado em mil prestações, já olham: "Ladrão'!", comenta a policial. "Boa sorte!"
De volta à companhia, passei por seis colegas de pelotão, que limpavam a área perto do campo. "É sério mesmo, cara, vai sair?" Deram-me um abraço e falaram para não perdermos contato. Na companhia, despedi-me dos dois sargentos.
"Vai com Deus e sucesso", desejou a sargenteante, batendo de leve em meu ombro.
"Meu amigo, boa sorte, vai com Deus! Lembre só das coisas boas da PM, esqueça as ruins. Não fale mal da PM, fale só as coisas boas, as ruins esqueça!", disse o sargento careca, sorrindo, como sempre. Eu estava em posição de sentido. "Pára com isso, você não é mais militar, não!"
"Defunto" encomendado, senti-me livre. Durante 23 dias, vivi como PM. Quando saí da companhia, pelo atalho antes proibido, restavam 454 alunos na turma do Curso de Formação de Soldados 2008.


Texto Anterior: 9. Favela X zona sul
Próximo Texto: Decálogo policial é lido ao microfone
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.