São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A gente sabe tudo!"

Candidato passa por investigação minuciosa, e polícia pergunta sobre seus antecedentes até a porteiro

DA SUCURSAL DO RIO

Raphael, um sargento veio perguntar por você. Vai entrar para a PM, é?", questionou o porteiro, quando cheguei de viagem em setembro. "Fique tranqüilo: falei que você é jornalista conceituado."
Achei que estava encerrada minha chance de fazer o curso de formação da PM. No "Inventário de Pesquisa Social", 15 folhas, escrevi ser formado em Comunicação e trabalhar na "Folha da Manhã S.A.", mas evitara o termo "repórter".
Com uma foto ampliada, o PM à paisana perguntara sobre mim na rua. A diligência visa a identificar a "ambiência social" e se o candidato é criminoso, encrenqueiro ou usa drogas. Só meu irmão estava em casa. Em certos casos, falam com os pais e vêem até o quarto.
Outro porteiro, José, tentou me demover. "Vai ser mesmo PM, é? Tá maluco, homem?" Tinha certeza de que me interrogariam sobre a profissão. Mas, na entrevista rápida, o sargento só confirmou dados e fez uma ou outra pergunta, nada sobre eu ser jornalista.
Tive mais duas entrevistas: "Por que quer ser PM? Vai a baile funk? Alguém na família preso? Parentes na PM? Drogas? Nunca? Nunca mesmo? Tem arma de fogo?"

Teste de paciência
O inventário que preenchemos nas arquibancadas de um ginásio na seleção tem nossa foto 5 por 7 na capa, com o aviso: "Seja sincero, pois o que responder será investigado posteriormente. [...] Sua honestidade poderá torná-lo um PM".
É a primeira etapa da investigação da vida e de antecedentes. Depois, apresentamos certidão de "nada consta" criminal, do Serasa e SPC (serviços de proteção ao crédito), além de oito "declarações de idoneidade (boa conduta)" de pessoas segundo as quais sou "cidadão honesto, trabalhador, de idoneidade inquestionável, acima de qualquer suspeita".
"Não ache que vai enganar a pesquisa social. Não invente. A gente sabe tudo! Quem omite, está escondendo, será reprovado. Fumou maconhazinha há quatro anos, escreve! A gente descobre. Seu amigo é que vai te entregar."
Cavanhaque, camisa aberta revelando cordão de ouro, o sargento grita. "Quis entrar para a PM? PM é "créu". Fez prova sem carteira de motorista [ríspido]? Está no edital. Não tem, está eliminado."
Mostram foto de rapaz com submetralhadora. "Era candidato. Outro foi preso três vezes em Portugal e achou que fosse entrar aqui." Um rapaz me revela: "Apaguei o Orkut (um dos itens) ontem, fiz um novo."
O candidato responde, entre outras coisas: se já teve parentes ou vizinhos presos ou envolvidos em contravenção ou drogas; passagem pela polícia; quantas vezes usou droga e o motivo; se tem tatuagem e o significado; por que se inscreveu e a opinião da família; se trabalha em atividade informal ou transporte alternativo.
"Se tem milícia, ponho?", perguntam. "Milícia e tráfico são iguais, só troca a fantasia."
O concurso é um teste de paciência. Do exame intelectual à incorporação foram sete meses de processo e 18 idas ao Centro de Formação, a 45 km da minha casa, na zona sul.
Na seleção, tínhamos hora para chegar (entre 7h e 7h30), mas não para sair. Podia demorar duas, três horas ou o dia inteiro, dependendo da burocracia, da fila, da classificação, da parada para almoço dos PMs...
Uma vez esperei três horas para tirar impressões digitais, após ir para o fim da fila por dever comprovante de residência. "Não faz essa cara, não! Nem entrou e já está reclamando!", repreendeu-me uma sargento.
Muitos se queixavam de faltar ou se atrasar no trabalho. Outros de ter de ir só pelo resultado de uma etapa. "Bastava pôr na internet."
Houve atrasos no calendário. Em agosto, a previsão de incorporação era outubro. Depois ouvimos que seria em novembro, em 7 e 20 de dezembro. Em 10 de dezembro, nos avisaram que seria em janeiro, mas ainda voltaríamos no dia 27, para inspeção de barba e cabelo e pegar o RG da PM.

Resistência familiar
O gerente jurídico de uma construtora, advogado de 24 anos, ficou entre os cinco primeiros colocados. Terno e gravata, cabelos louros compridos, chamava a atenção na seleção.
"Sempre quis ser policial." Pretendia ser oficial ou delegado federal. "Não adianta, não gosto de direito imobiliário." Já não tinha desculpas para o chefe pelas faltas e atrasos. "Carro do pai bateu, dengue..." Convenceu o patrão, mas perdeu a namorada, advogada. "Acha que estou andando para trás. É preconceito." Abandonou o treinamento no segundo mês.
Principalmente entre jovens de classe média -mas também entre outros-, a resistência da família é motivo de desistências do curso.
Boa parte dos recrutas não pretendia seguir carreira como soldado, vista como emprego provisório. Com salário baixo e alto risco, a PM é trampolim para concursos mais estáveis e bem remunerados. Entre os 450, havia classificados até a 1.700ª colocação, devido a reprovações e desistências.
Aprovados no concurso de nível médio, muitos são formados ou cursam faculdade; há grande número de ex-militares e militares temporários.
A PM firmou convênio com uma faculdade particular e criou um curso de direito na sede da Academia de Polícia Militar Dom João 6º, no centro de formação. Com desconto de 40%, o custo mensal cai para R$ 211,84.
Um ex-fuzileiro, aluno de direito, recomendou: "Não fica nessa não, cara! Eu não vou ficar aqui muito tempo. Quero sair o quanto antes. Estudar, fazer concurso."
O uso da carteira policial como salvo-conduto é um "salário indireto". "Tem gente que dá "carteirada" com a identidade do curso e até com a foto 3 por 4 para não pagar boate, é brincadeira? Um do meu concurso não pagava nada: ia ao cinema e jantava de graça com a namorada. Usa-se a carteira muito mais na folga. Com a farda, você é "o cara", ninguém nega nada", diz um cabo. (RG)


Texto Anterior: Decálogo policial é lido ao microfone
Próximo Texto: PM de algemas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.