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"A gente sabe tudo!"
Candidato passa por investigação minuciosa, e polícia pergunta
sobre seus antecedentes até a porteiro
DA SUCURSAL DO RIO
Raphael, um sargento
veio perguntar por
você. Vai entrar para
a PM, é?", questionou o porteiro,
quando cheguei de viagem em
setembro. "Fique tranqüilo: falei que você é jornalista conceituado."
Achei que estava encerrada
minha chance de fazer o curso
de formação da PM. No "Inventário de Pesquisa Social", 15
folhas, escrevi ser formado em
Comunicação e trabalhar na
"Folha da Manhã S.A.", mas
evitara o termo "repórter".
Com uma foto ampliada, o
PM à paisana perguntara sobre
mim na rua. A diligência visa a
identificar a "ambiência social"
e se o candidato é criminoso,
encrenqueiro ou usa drogas. Só
meu irmão estava em casa. Em
certos casos, falam com os pais
e vêem até o quarto.
Outro porteiro, José, tentou
me demover. "Vai ser mesmo
PM, é? Tá maluco, homem?"
Tinha certeza de que me interrogariam sobre a profissão.
Mas, na entrevista rápida, o
sargento só confirmou dados e
fez uma ou outra pergunta, nada sobre eu ser jornalista.
Tive mais duas entrevistas:
"Por que quer ser PM? Vai a
baile funk? Alguém na família
preso? Parentes na PM? Drogas? Nunca? Nunca mesmo?
Tem arma de fogo?"
Teste de paciência
O inventário que preenchemos nas arquibancadas de um
ginásio na seleção tem nossa
foto 5 por 7 na capa, com o aviso: "Seja sincero, pois o que responder será investigado posteriormente. [...] Sua honestidade
poderá torná-lo um PM".
É a primeira etapa da investigação da vida e de antecedentes. Depois, apresentamos certidão de "nada consta" criminal, do Serasa e SPC (serviços
de proteção ao crédito), além
de oito "declarações de idoneidade (boa conduta)" de pessoas
segundo as quais sou "cidadão
honesto, trabalhador, de idoneidade inquestionável, acima
de qualquer suspeita".
"Não ache que vai enganar a
pesquisa social. Não invente. A
gente sabe tudo! Quem omite,
está escondendo, será reprovado. Fumou maconhazinha há
quatro anos, escreve! A gente
descobre. Seu amigo é que vai
te entregar."
Cavanhaque, camisa aberta
revelando cordão de ouro, o
sargento grita. "Quis entrar para a PM? PM é "créu". Fez prova
sem carteira de motorista [ríspido]? Está no edital. Não tem,
está eliminado."
Mostram foto de rapaz com
submetralhadora. "Era candidato. Outro foi preso três vezes
em Portugal e achou que fosse
entrar aqui." Um rapaz me revela: "Apaguei o Orkut (um dos
itens) ontem, fiz um novo."
O candidato responde, entre
outras coisas: se já teve parentes ou vizinhos presos ou envolvidos em contravenção ou
drogas; passagem pela polícia;
quantas vezes usou droga e o
motivo; se tem tatuagem e o
significado; por que se inscreveu e a opinião da família; se
trabalha em atividade informal
ou transporte alternativo.
"Se tem milícia, ponho?",
perguntam. "Milícia e tráfico
são iguais, só troca a fantasia."
O concurso é um teste de paciência. Do exame intelectual à
incorporação foram sete meses
de processo e 18 idas ao Centro
de Formação, a 45 km da minha
casa, na zona sul.
Na seleção, tínhamos hora
para chegar (entre 7h e 7h30),
mas não para sair. Podia demorar duas, três horas ou o dia inteiro, dependendo da burocracia, da fila, da classificação, da
parada para almoço dos PMs...
Uma vez esperei três horas
para tirar impressões digitais,
após ir para o fim da fila por dever comprovante de residência.
"Não faz essa cara, não! Nem
entrou e já está reclamando!",
repreendeu-me uma sargento.
Muitos se queixavam de faltar ou se atrasar no trabalho.
Outros de ter de ir só pelo resultado de uma etapa. "Bastava
pôr na internet."
Houve atrasos no calendário.
Em agosto, a previsão de incorporação era outubro. Depois
ouvimos que seria em novembro, em 7 e 20 de dezembro.
Em 10 de dezembro, nos avisaram que seria em janeiro, mas
ainda voltaríamos no dia 27,
para inspeção de barba e cabelo
e pegar o RG da PM.
Resistência familiar
O gerente jurídico de uma
construtora, advogado de 24
anos, ficou entre os cinco primeiros colocados. Terno e gravata, cabelos louros compridos,
chamava a atenção na seleção.
"Sempre quis ser policial."
Pretendia ser oficial ou delegado federal. "Não adianta, não
gosto de direito imobiliário." Já
não tinha desculpas para o chefe pelas faltas e atrasos. "Carro
do pai bateu, dengue..." Convenceu o patrão, mas perdeu a
namorada, advogada. "Acha
que estou andando para trás. É
preconceito." Abandonou o
treinamento no segundo mês.
Principalmente entre jovens
de classe média -mas também
entre outros-, a resistência da
família é motivo de desistências do curso.
Boa parte dos recrutas não
pretendia seguir carreira como
soldado, vista como emprego
provisório. Com salário baixo e
alto risco, a PM é trampolim
para concursos mais estáveis e
bem remunerados. Entre os
450, havia classificados até a
1.700ª colocação, devido a reprovações e desistências.
Aprovados no concurso de
nível médio, muitos são formados ou cursam faculdade; há
grande número de ex-militares
e militares temporários.
A PM firmou convênio com
uma faculdade particular e
criou um curso de direito na sede da Academia de Polícia Militar Dom João 6º, no centro de
formação. Com desconto de
40%, o custo mensal cai para
R$ 211,84.
Um ex-fuzileiro, aluno de direito, recomendou: "Não fica
nessa não, cara! Eu não vou ficar aqui muito tempo. Quero
sair o quanto antes. Estudar, fazer concurso."
O uso da carteira policial como salvo-conduto é um "salário indireto". "Tem gente que
dá "carteirada" com a identidade do curso e até com a foto 3
por 4 para não pagar boate, é
brincadeira? Um do meu concurso não pagava nada: ia ao cinema e jantava de graça com a
namorada. Usa-se a carteira
muito mais na folga. Com a farda, você é "o cara", ninguém nega nada", diz um cabo.
(RG)
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