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Ponto de fuga
Uma luz nas trevas
Os nus, em desenho, pintura, gravura, escultura, buscam a concentração, a quintessência de uma forma feminina, sem perder sua materialidade carnal
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
No domínio das grandes
mostras, há as exposições carnavalescas e as
exposições fáceis. As primeiras apóiam-se nos cenários, na
concepção teatral, no espetáculo. Quadros e estátuas se inserem ali como podem. Os arranjos visuais os neutralizam.
Estão lá pelo valor sacralizado
que se confere às artes, e não
como coisas, objetos. Suas
presenças são obrigatórias para garantir o tom convencional de elevação culta, disfarçando outros interesses, às vezes sociais, às vezes financeiros.
As segundas, ou seja, as fáceis, são exposições de porte
não muito grande, que vêm
em pacotes. Percorrem o
mundo: tesouros do século
qual, pertencentes ao museu
tal; obras-primas da coleção
particular de fulano ou beltrano. Prontinhas e sumárias. Os
curadores têm pouco trabalho, já que não precisam pensar num projeto complexo
nem correr atrás de empréstimos em diversos museus. Têm
um alcance reflexivo bem limitado.
Decerto haverá outros tipos
de mostra, mas esses são bem
freqüentes. Não cumprem
com suas obrigações, já que
deveriam sempre suscitar a
inteligência e a reflexão, levar
a compreender melhor os fenômenos culturais e artísticos
de que tratam. As exposições
inteligentes são raras, muito
raras. Por isso mesmo é preciso correr para o Masp, que
abriga, neste momento, uma
extraordinária mostra sobre
Edgar Degas [1834-1917].
Sintonia
Os curadores, Eugenia Gorini Esmeraldo, Ana Magalhães
e Romaric Sulger-Büel, sabiam o que tinham de fazer e o
fizeram. Não há saturação de
obras, como em certas retrospectivas pletóricas.
O critério foi selecionar com
cuidado, apresentar com pertinência e provocar centelhas
de compreensão.
O Masp possui em suas coleções muitas obras de Degas, e o
conjunto quase completo de
suas numerosas esculturas em
bronze: um núcleo que forçosamente devia orientar as escolhas. Outros artistas, no próprio e excepcional acervo do
museu, podiam contribuir para relações estimulantes.
Mas esse fundo local não
bastava. Vieram, assim, de Paris, Chicago, Nova York (mas
também de lugares perdidos e
inusitados, como um maravilhoso quadrinho trazido de
Gerardmer, na França, cidadezinha conhecida apenas por
seu festival de filmes de terror!) criações que iluminam
aquelas residentes em São
Paulo. Emerge disso tudo um
Degas tão clássico quanto moderno, aristocrata e voyeur.
A proximidade, a disposição,
a conversa entre as obras ensinam a ver e a descobrir. Um relevo em bronze de Degas é rugoso como a caverna de são Jerônimo, pintada por Mantegna: são afinidades inesperadas.
Os nus femininos em bronze
de Degas, vibrantes, concisos,
denunciam a eloqüência derramada de um Rodin; bastou
serem postos perto uns dos
outros. A questão do movimento em Degas não é, aqui,
apenas um pretexto: quem
instalou os cavalos e bailarinas
conhecia bem as fotografias de
Muybridge ou Marey. Os nus,
em desenho, pintura, gravura,
escultura, buscam a concentração, a quintessência de uma
forma feminina, sem perder
sua materialidade carnal.
Ótima idéia foi trazer de Paris o traço libidinoso de Picasso comentando Degas. Um excelente resultado geral, fruto
de um conhecimento fino, rigoroso e claramente entusiasta. Atesta, como episódio de
exceção à regra, o que o Masp
poderia ser sempre, se ele não
fosse o que vem sendo há anos.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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