São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Ponto de fuga

Uma luz nas trevas

Os nus, em desenho, pintura, gravura, escultura, buscam a concentração, a quintessência de uma forma feminina, sem perder sua materialidade carnal

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No domínio das grandes mostras, há as exposições carnavalescas e as exposições fáceis. As primeiras apóiam-se nos cenários, na concepção teatral, no espetáculo. Quadros e estátuas se inserem ali como podem. Os arranjos visuais os neutralizam. Estão lá pelo valor sacralizado que se confere às artes, e não como coisas, objetos. Suas presenças são obrigatórias para garantir o tom convencional de elevação culta, disfarçando outros interesses, às vezes sociais, às vezes financeiros. As segundas, ou seja, as fáceis, são exposições de porte não muito grande, que vêm em pacotes. Percorrem o mundo: tesouros do século qual, pertencentes ao museu tal; obras-primas da coleção particular de fulano ou beltrano. Prontinhas e sumárias. Os curadores têm pouco trabalho, já que não precisam pensar num projeto complexo nem correr atrás de empréstimos em diversos museus. Têm um alcance reflexivo bem limitado. Decerto haverá outros tipos de mostra, mas esses são bem freqüentes. Não cumprem com suas obrigações, já que deveriam sempre suscitar a inteligência e a reflexão, levar a compreender melhor os fenômenos culturais e artísticos de que tratam. As exposições inteligentes são raras, muito raras. Por isso mesmo é preciso correr para o Masp, que abriga, neste momento, uma extraordinária mostra sobre Edgar Degas [1834-1917].

Sintonia
Os curadores, Eugenia Gorini Esmeraldo, Ana Magalhães e Romaric Sulger-Büel, sabiam o que tinham de fazer e o fizeram. Não há saturação de obras, como em certas retrospectivas pletóricas. O critério foi selecionar com cuidado, apresentar com pertinência e provocar centelhas de compreensão. O Masp possui em suas coleções muitas obras de Degas, e o conjunto quase completo de suas numerosas esculturas em bronze: um núcleo que forçosamente devia orientar as escolhas. Outros artistas, no próprio e excepcional acervo do museu, podiam contribuir para relações estimulantes. Mas esse fundo local não bastava. Vieram, assim, de Paris, Chicago, Nova York (mas também de lugares perdidos e inusitados, como um maravilhoso quadrinho trazido de Gerardmer, na França, cidadezinha conhecida apenas por seu festival de filmes de terror!) criações que iluminam aquelas residentes em São Paulo. Emerge disso tudo um Degas tão clássico quanto moderno, aristocrata e voyeur. A proximidade, a disposição, a conversa entre as obras ensinam a ver e a descobrir. Um relevo em bronze de Degas é rugoso como a caverna de são Jerônimo, pintada por Mantegna: são afinidades inesperadas. Os nus femininos em bronze de Degas, vibrantes, concisos, denunciam a eloqüência derramada de um Rodin; bastou serem postos perto uns dos outros. A questão do movimento em Degas não é, aqui, apenas um pretexto: quem instalou os cavalos e bailarinas conhecia bem as fotografias de Muybridge ou Marey. Os nus, em desenho, pintura, gravura, escultura, buscam a concentração, a quintessência de uma forma feminina, sem perder sua materialidade carnal. Ótima idéia foi trazer de Paris o traço libidinoso de Picasso comentando Degas. Um excelente resultado geral, fruto de um conhecimento fino, rigoroso e claramente entusiasta. Atesta, como episódio de exceção à regra, o que o Masp poderia ser sempre, se ele não fosse o que vem sendo há anos.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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