São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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+ religião

Três lançamentos tentam humanizar os primórdios do cristianismo, mas esbarram na falta de rigor investigativo

Jesus Cristo superstar

LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jesus virou celebridade da indústria cultural. Esse fato pode ser pensado no mínimo em duas chaves. Numa primeira, o Jesus histórico recebe um tratamento pseudo-investigativo no estilo melodrama best-seller (próximo lançamento: os manuscritos da irmã de Jesus, a verdadeira enviada de Deus, mas oprimida pelo machismo judaico). Nesse primeiro caso, estamos diante da herança banalizada de uma segunda chave, aquela que é a crítica histórica bíblica liberal do século 19, esta, sim, uma tentativa de estabelecer "cientificamente" a "identidade verdadeira" do homem Jesus. Teologicamente, esse fenômeno se alimenta da fúria pela "humanização de Jesus" (esse neo-arianismo), típica de nossa moderna cultura narcísica. O fato é que a indústria da crítica cultural costuma ser altamente promíscua (e aberta a qualquer bobagem "libertária"), e não acho que, ao final, as fronteiras entre uma chave e outra sejam lá muito seguras em épocas pós-modernas. A tendência a reduzir a crítica exegética às formas distintas de militâncias culturais é prática corriqueira, inclusive com as bençãos de grande parte da própria academia.

Ajuda à causa
O trabalho histórico de determinação do cânone cristão (como de qualquer outro texto revelado ou sagrado) é extremamente complexo e longo -e não fruto de simples manipulações de gênero, grupo social ou preconceitos banais, como quer muito da indústria da crítica cultural, que muitas vezes vê fenômenos como esse como uma espécie de "ajuda à causa".

Raízes judaicas
Além disso, o perfil de quem lê tais "investigações" é normalmente de consumidores preguiçosos de best-sellers, mas que pensam que lêem história. E, finalmente, o que também ajuda o fenômeno é a disposição infantil da maior parte dos leitores para acreditar nas variadas formas de teorias da suspeita e da conspiração, principalmente em relação à história do cristianismo. "As Várias Faces de Jesus" [ed. Record, trad. Renato Aguiar, 364 págs., R$ 49,90], do historiador Geza Vermes, professor na Universidade de Oxford, inscreve-se na tradição da crítica histórica, buscando ampliar o conhecimento das raízes judaicas de Jesus, identificando-o como uma espécie de "hassid" (um judeu piedoso e místico). A tendência hoje de recuperar (o óbvio) judaísmo de Jesus é grande. Já o "Evangelho de Judas" [Ediouro, tradução de Beatriz Horta, 292 págs., R$ 29,90], de Simom Mawer, um romance, e "Os Manuscritos de Jesus" [Nova Fronteira, tradução de Regina Lyra, 304 págs., R$ 29,90], de Michael Baigent, um "ensaio histórico", são ambos exemplos claros de banalização da crítica histórica. O primeiro usa o Evangelho de Judas para "afirmar" que Jesus não ressuscitou e para "recuperar" a imagem do traidor, em meio a clichês de enredo entre os "pesquisadores". O segundo é mais "sofisticado", apresentando-se na forma de um relato de pesquisa. Jesus, além de casado com Madalena (já lugar-comum entre os "especialistas nos segredos de Jesus"), era de fato o herdeiro de sangue do trono de Israel (por isso foi escrito "Jesus, rei dos judeus" na cruz) e foi condenado por isso (e todo o blablablá do "Sang Real... Santo Graal" se segue a esses "fatos"). Outra "descoberta" dos manuscritos de Jesus é que ele não morreu na cruz, mas foi tudo um arranjo para fazê-lo escapar da morte. Suas aparições posteriores foram mal compreendidas, e aqui vemos o caráter "científico" da obra em questão, reduzindo a ressurreição a mera superstição associada à pura falta de conhecimento -Baigent aqui banaliza os erros da crítica bíblica de Espinosa. Segundo a "pesquisa", o trabalho do cristianismo histórico foi reprimir essas "grandes verdades" para construir a divindade do mero herói político judeu. O truque "arqueológico" de análise/ficção do texto, por exemplo, é claro no caso de Baigent: citando um trecho do Evangelho gnóstico de Filipe no qual relatam-se hábitos de convivência entre Jesus, Madalena e apóstolos, nosso "pesquisador-narrador" acrescenta palavras inexistentes ao original a fim de sustentar sua tese sobre o amor proibido entre Jesus e Madalena.

Fim da cultura cristã
Interessante que, em todo esse fenômeno cultural, o comum é a contínua negação da divindade de Jesus. Esse fato me lembra o temor manifestado há dez anos pelo medievalista francês Jacques le Goff: vivemos um processo de destruição da cultura cristã ocidental. De onde vem essa pulsão suicida? É ridículo perceber como a cultura semiletrada se delicia com esse fenômeno, vendo nele um avanço na construção da "consciência histórica emancipada". O cristianismo nos fala, entre outras coisas, do mal inerente à natureza humana, seu orgulho, sua insuficiência e sua tristeza estrutural, faces do mesmo mal, o nada que nos devora. Esse fenômeno indica como a indústria cultural pop parasita o que importa no debate, alimentando com mesquinharias o imaginário infantil do ser humano. Humanizar Jesus é, no fundo, banalizá-lo.


LUIZ FELIPE PONDÉ é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica-SP e da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado. É autor de "Crítica e Profecia - Filosofia da Religião em Dostoiévski" (ed. 34).


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