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+ religião
Três lançamentos tentam humanizar
os primórdios
do cristianismo,
mas esbarram
na falta
de rigor
investigativo
Jesus Cristo superstar
LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Jesus virou celebridade
da indústria cultural. Esse fato pode ser pensado
no mínimo em duas chaves. Numa primeira, o
Jesus histórico recebe um tratamento pseudo-investigativo
no estilo melodrama best-seller (próximo lançamento: os
manuscritos da irmã de Jesus,
a verdadeira enviada de Deus,
mas oprimida pelo machismo
judaico).
Nesse primeiro caso, estamos diante da herança banalizada de uma segunda chave,
aquela que é a crítica histórica
bíblica liberal do século 19, esta, sim, uma tentativa de estabelecer "cientificamente" a
"identidade verdadeira" do homem Jesus.
Teologicamente, esse fenômeno se alimenta da fúria pela
"humanização de Jesus" (esse
neo-arianismo), típica de nossa
moderna cultura narcísica. O
fato é que a indústria da crítica
cultural costuma ser altamente
promíscua (e aberta a qualquer
bobagem "libertária"), e não
acho que, ao final, as fronteiras
entre uma chave e outra sejam
lá muito seguras em épocas
pós-modernas.
A tendência a reduzir a crítica exegética às formas distintas
de militâncias culturais é prática corriqueira, inclusive com as
bençãos de grande parte da
própria academia.
Ajuda à causa
O trabalho histórico de determinação do cânone cristão
(como de qualquer outro texto
revelado ou sagrado) é extremamente complexo e longo -e
não fruto de simples manipulações de gênero, grupo social ou
preconceitos banais, como
quer muito da indústria da crítica cultural, que muitas vezes
vê fenômenos como esse como
uma espécie de "ajuda à causa".
Raízes judaicas
Além disso, o perfil de quem
lê tais "investigações" é normalmente de consumidores
preguiçosos de best-sellers,
mas que pensam que lêem história. E, finalmente, o que também ajuda o fenômeno é a disposição infantil da maior parte
dos leitores para acreditar nas
variadas formas de teorias da
suspeita e da conspiração, principalmente em relação à história do cristianismo.
"As Várias Faces de Jesus"
[ed. Record, trad. Renato
Aguiar, 364 págs., R$ 49,90], do
historiador Geza Vermes, professor na Universidade de Oxford, inscreve-se na tradição da
crítica histórica, buscando ampliar o conhecimento das raízes
judaicas de Jesus, identificando-o como uma espécie de
"hassid" (um judeu piedoso e
místico). A tendência hoje de
recuperar (o óbvio) judaísmo
de Jesus é grande.
Já o "Evangelho de Judas"
[Ediouro, tradução de Beatriz
Horta, 292 págs., R$ 29,90], de
Simom Mawer, um romance, e
"Os Manuscritos de Jesus"
[Nova Fronteira, tradução de
Regina Lyra, 304 págs., R$
29,90], de Michael Baigent, um
"ensaio histórico", são ambos
exemplos claros de banalização
da crítica histórica.
O primeiro usa o Evangelho
de Judas para "afirmar" que Jesus não ressuscitou e para "recuperar" a imagem do traidor,
em meio a clichês de enredo
entre os "pesquisadores". O segundo é mais "sofisticado",
apresentando-se na forma de
um relato de pesquisa.
Jesus, além de casado com
Madalena (já lugar-comum entre os "especialistas nos segredos de Jesus"), era de fato o
herdeiro de sangue do trono de
Israel (por isso foi escrito "Jesus, rei dos judeus" na cruz) e
foi condenado por isso (e todo o
blablablá do "Sang Real... Santo
Graal" se segue a esses "fatos").
Outra "descoberta" dos manuscritos de Jesus é que ele não
morreu na cruz, mas foi tudo
um arranjo para fazê-lo escapar
da morte.
Suas aparições posteriores
foram mal compreendidas, e
aqui vemos o caráter "científico" da obra em questão, reduzindo a ressurreição a mera superstição associada à pura falta
de conhecimento -Baigent
aqui banaliza os erros da crítica
bíblica de Espinosa.
Segundo a "pesquisa", o trabalho do cristianismo histórico
foi reprimir essas "grandes verdades" para construir a divindade do mero herói político judeu. O truque "arqueológico"
de análise/ficção do texto, por
exemplo, é claro no caso de Baigent: citando um trecho do
Evangelho gnóstico de Filipe
no qual relatam-se hábitos de
convivência entre Jesus, Madalena e apóstolos, nosso "pesquisador-narrador" acrescenta palavras inexistentes ao original a
fim de sustentar sua tese sobre
o amor proibido entre Jesus e
Madalena.
Fim da cultura cristã
Interessante que, em todo
esse fenômeno cultural, o comum é a contínua negação da
divindade de Jesus.
Esse fato me lembra o temor
manifestado há dez anos pelo
medievalista francês Jacques le
Goff: vivemos um processo de
destruição da cultura cristã ocidental. De onde vem essa pulsão suicida? É ridículo perceber como a cultura semiletrada
se delicia com esse fenômeno,
vendo nele um avanço na construção da "consciência histórica emancipada".
O cristianismo nos fala, entre
outras coisas, do mal inerente à
natureza humana, seu orgulho,
sua insuficiência e sua tristeza
estrutural, faces do mesmo
mal, o nada que nos devora. Esse fenômeno indica como a indústria cultural pop parasita o
que importa no debate, alimentando com mesquinharias o
imaginário infantil do ser humano. Humanizar Jesus é, no
fundo, banalizá-lo.
LUIZ FELIPE PONDÉ é professor do programa
de pós-graduação em ciências da religião e do
departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica-SP e da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado. É autor de "Crítica e Profecia - Filosofia da
Religião em Dostoiévski" (ed. 34).
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