São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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A ESCRITA DO AFETO E DO MEDO

PESQUISADORA DO UNIVERSO DOS BLOGUES DISCUTE AS NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE CRIADAS PELO AMBIENTE VIRTUAL

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Há quem diga que blogues, chats e fóruns foram a infância da internet e que comunidades digitais como o Orkut seriam os primeiros indícios de sua maturidade. Se a nova sociabilidade que a rede está propiciando se desenvolve a passos largos, a produção acadêmica não acompanha seu ritmo, e raros são os estudos que refletem sobre ela. Denise Ferreira de Araújo Schittine, autora de "Blog - Comunicação e Escrita Íntima na Internet", a ser lançado em breve pela editora Record, analisou o fenômeno dos diários pessoais disponibilizados em rede e empreendeu uma pesquisa de campo para saber quem são, para quem escrevem e que tipo de laços estabelecem os "blogueiros" -assunto sobre o qual discorreu em entrevista ao Mais!, por e-mail.
 
A sra. compara o fenômeno dos blogues (cujo surgimento no Brasil localiza especificamente no ano 2000) com o da disseminação das "webcams" com fins voyeuristas e dos "reality shows". Seriam esses sintomas do fim da esfera íntima construída com a ascensão da classe burguesa e consolidada com o individualismo, cuja expressão mais acabada se encontra no romance do século 19?
Não acredito que esses sejam exatamente sintomas do fim da esfera íntima. Acho que a burguesia levou muito tempo para construir essa esfera e provavelmente não abriria mão dela tão facilmente. Foi um individualismo construído com excesso de zelo. E o computador (como aparelho-prolongamento do corpo humano) veio um pouco para reforçar esse individualismo. É um aparelho feito para exacerbar a concentração de quem escreve, nos limites físicos de seu corpo e dos dedos sob o teclado. Ao mesmo tempo, a atenção desse indivíduo se volta para o espaço que está sendo criado naquele quadradinho que é a tela. Enquanto faz isso, o usuário se distancia do ambiente e das relações que estão à sua volta para se desdobrar num outro mundo, num segundo mundo que está sendo construído ali no ambiente virtual.
Isso reforça o individualismo? Provavelmente. Quando estamos no computador, abrimos mão do "mundo real" para nos fecharmos no nosso "mundinho". Por outro lado, os outros apontamentos da invasão da esfera íntima ("webcams", "reality shows" e, junto, os blogues) só funcionam na medida em que reforçam ou sacralizam essa esfera. Ou seja, é possível entrar num blogue, mas nunca conhecer o autor pessoalmente; observar alguém através de "webcams", mas nunca estabelecer diálogo; é possível torcer pelo personagem do "reality show", mas nunca conhecer realmente a pessoa que está por trás daquele personagem.
As possibilidades de desvendamento do outro só são permitidas com o consentimento desse outro. Por isso, a esfera íntima permanece de certa maneira intocada -porque, no caso do blogue, existe uma bruma, um véu ainda intransponível representado pela superfície opaca da tela.

Que transformações o advento do computador pessoal e da internet opera em gêneros literários como diários, memórias e escritos afins?
O computador pessoal e a internet -cada um a seu tempo e de formas diferentes- operam mudanças não só nas "escritas do eu" (como Paul de Man escolheu chamar a biografia, o diário, a memória) como em outros tipos de escrita. A primeira e fundamental mudança da escrita pelo computador é o tempo de criação e reflexão do texto. Então, vemos na atualidade escritores que dependem fundamentalmente do barulhinho da tela se "abrindo" e das torres perscrutando arquivos anteriores para começar a escrever. Para esse mesmo escritor, o branco da tela do Word é muito menos aterrador para começar a escrever do que a folha de um caderno. Há outros escritores (ou diaristas, como preferir chamar) para quem o processo criativo não acontece sem o volume e o peso das folhas de papel nas mãos, sem as possibilidades de rasura, sem o instante exato em que buscam a "mot juste" para uma frase com o lápis na boca.
Então, estruturalmente, o texto de escrita livre (como é o texto do blogue) muda fisicamente: a ortografia é substituída pela tipografia, a rasura pelo texto limpo, as folhas repletas de bricolagem pelas páginas lançadas no espaço virtual do computador. O texto que vai para a internet, então, caracteriza a escrita fluida, transitória, sujeita a mudanças.
Por outro lado, o blogue supõe e espera uma escrita direta, informativa, um texto curto, menos elíptico. É possível que essas características e mais inúmeras possibilidades de reescritura e mudança do texto dêem a essa nova escrita íntima (pensada no espaço virtual) mais qualidade de estilo. Mas essa qualidade se ganha em detrimento de duas características ainda fundamentais do escrito íntimo: a memória e a personalização. Como nada que caracteriza o cerne do escrito íntimo está sendo perdido, cabe aos novos diaristas (os virtuais) descobrirem maneiras de desenvolver a memória e a personalidade em seus escritos.

A partir do momento em que a existência de um diário íntimo na internet deixa de constituir um paradoxo, também cai o mito da ausência do leitor. O blogue supõe um público e uma relação com ele. Como fica o estatuto da confiança e da cumplicidade nesse novo tipo de relação?
Muitas das características do escrito íntimo não se perderam com a passagem para a internet, apenas se modificaram. O barato é exatamente estudar o caráter de adaptação dessas estruturas seculares da amizade, da cumplicidade, do contrato de cavalheiros ao ambiente virtual. O desejo de ser lido está mais forte do que nunca. Um dos méritos dessa nova escrita íntima é tentar apontar mais uma resposta para a impossível equação ocidental "eu x outro". No blogue essa equação aparece mais uma vez: quem escreve deseja saber a opinião desse outro, procura se identificar com ele. A tensão continua porque na internet se relacionar com o outro não significa conhecê-lo exatamente como é, mas conhecê-lo de forma desigual: profundamente em algumas áreas, superficialmente em outras. E nunca ter certeza de que aquele que escreve é o mesmo ente que está por trás da tela.
Então é preciso redimensionar as relações, porque elas acontecem com alguém que conhecemos "por escrito", não pessoalmente. É bom porque caiu por terra a tensão inicial imposta pela relação face a face, mas entra uma outra tensão, talvez muito mais forte: a de estabelecer confiança. Como estabelecer confiança com alguém que não conhecemos? Então surgem algumas saídas bastante originais e outras que são apenas releituras de tudo o que já foi feito. O contrato de cumplicidade e o acordo de cavalheiros são formas antigas de estabelecer confiança, formas que remontam às confrarias, aos clubes, às maçonarias. Não é sensacional que reapareçam no século 21? E que reapareçam porque são, ainda, as formas burguesas de estabelecer confiança? A cumplicidade com o outro, aquele que não conhecemos, que está separado por léguas de distância pela superfície opaca da tela, é feita por um fino e delicado fio: o da identificação. Se podemos ver no outro um pouco de nós mesmos, pronto! Lá está um igual ou parecido (um espelho), lá está alguém em que podemos confiar.

Quais as perdas e ganhos, tanto para os autores dos blogues quanto para seus leitores, do compartilhamento da intimidade na internet?
É um jogo. Para quem escreve o diário é na internet que está a possibilidade de mostrar o texto, e não a cara. E, a partir daí, recolher as impressões e opiniões do público-leitor. Pode ser interessante escrever um texto menos alienante, um texto construído também com as impressões do outro. Mas pode também ser inteiramente desestimulante a opinião contrária de um leitor, que pode causar medo ou bloqueio. O leitor é uma madrasta em muitos casos pior do que um editor de jornal. Mas é assim que é, quem escreve diretamente para o público, sem nenhuma mediação limitadora de idéias ou conteúdo, precisa estar preparado para as críticas também.
Ambos -o leitor e o autor- podem também ser reféns da artificialização das relações que acontecem apenas textualmente. Essas relações se criam com uma certa expectativa e afastamento que depois é difícil de ser superado. E, aí, como passar das relações "literárias" para as relações face a face?

Não existe contradição quando, em um momento, a sra. fala no computador como um instrumento de isolamento e de "sociabilidade segura", por meio do qual é possível "formar uma rede de amigos virtuais que compensa o déficit de relações reais", e, mais adiante, defende que o blogue é um catalisador de comunidades, uma possibilidade de interação social criativa?
Acho que as duas informações não se subtraem, elas se complementam. É claro que o computador isola, em alguns casos, aquele que escreve do ambiente à sua volta. Mas aquele mesmo usuário que se perde concentrado num ambiente virtual está criando ali, naquele ambiente virtual, uma nova rede de amizades e relações. São amizades e relações feitas por meio do computador, com a distância invisível do tempo e do espaço, mas com pessoas que são reais. Não se pode tirar o mérito disso. Se essas relações são saudáveis ou não, ainda é uma questão.
Mas a resposta dos meus entrevistados no trabalho de campo sobre a questão da mentira, da construção de um caráter diferente ou de um personagem para circular na internet foram todas muito parecidas: não vale a pena mentir. Por trás de uma personagem criada pelo autor, existe o próprio autor. E, se existe no leitor um interesse genuíno por essa personagem, automaticamente o autor se vê obrigado a dizer mais verdades sobre si mesmo. O contrato de cumplicidade entre leitor-autor passa muito por essa questão.
A internet é um microcosmo. Uma sociedade que reproduz ou superproduz exatamente essa em que vivemos. Então, as relações, os desgastes, as aproximações e os afastamentos acontecem, sempre, mas num ambiente agora virtual. Criam-se novas formas de sociabilização construídas em cima da identificação pelos pequenos hábitos, esses biografemas virtuais.


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