São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Embora diferentes, campos de concentração nazista e soviético têm em comum a desumanização do indivíduo

As duas faces do totalitarismo

Boris Fausto

Ao longo de muitas décadas, estudos comparativos entre personagens ou instituições da Alemanha nazista e da União Soviética foram encarados quase como um escândalo. A razão, em poucas palavras, seria a suposta natureza intrinsecamente diferente dos dois regimes. A constatação é particularmente verdadeira no que se refere aos intelectuais de esquerda. A tentativa de enquadrar os dois casos sob o rótulo de totalitarismo pareceria um ardil ideológico que tomaria como relevantes alguns traços superestruturais, com o objetivo de ocultar estruturas básicas antagônicas: de um lado, o capitalismo na sua última fase de degenerescência; de outro, a fase de transição para o socialismo. Mesmo nos círculos liberais, havia uma tendência a não enxergar ou a minimizar os aspectos mais tenebrosos da ditadura soviética, assumindo a teoria de que os fins justificam os meios. Desse modo, exemplificando, os expurgos em massa dos anos de 1930, empreendidos por Stálin, seriam lamentáveis, mas de certa forma escusados, ao se ter em conta os êxitos da industrialização soviética. Uma brilhante exceção é Hannah Arendt. Em "Origens do Totalitarismo" (1951, publicado no Brasil pela Cia. das Letras), ela distingue o totalitarismo como uma categoria específica, distinta das aplicáveis a outros regimes ditatoriais, e engloba nessa categoria os regimes nazista e comunista, sem deixar de acentuar as diferenças. Se a repercussão de sua obra foi ampla, também foram amplas as críticas e as distorções de seu pensamento. São várias as razões para a resistência a enxergar de frente o que foi o sistema soviético. Dentre elas, lembremos que ele se assentou e se justificou a partir de uma ideologia universalista aparentemente generosa. Inserindo-se na trilha do sonho igualitário que percorre a história da humanidade, o marxismo-leninismo se apresentou como uma doutrina científica que tinha a chave da futura sociedade sem classes. Mesmo para quem não aderia a várias de suas formulações -a ditadura do proletariado, por exemplo-, a aura humanista acompanhou o regime soviético. Ela não se impôs, é certo, automaticamente, pois foi orquestrada por Moscou, utilizando os partidos comunistas; seja como for, os sons da orquestra tinha ouvidos propensos a escutá-los. Ao contrário, a ideologia nazista foi exposta claramente por Hitler, no "Mein Kampf" [Minha Luta], como instrumento a serviço de uma raça superior -os alemães de sangue ariano. A humanidade era uma categoria concreta desprezível que abrangia raças inferiores, como os eslavos, ou, pior ainda, uma escumalha de judeus, ciganos e outros seres subumanos. A invasão da União Soviética pela Alemanha, no curso da Segunda Guerra Mundial, contribuiu também para encobrir a marca totalitária do sistema soviético, tanto mais que a determinação de Stálin e de alguns de seus generais (Zukov, Timoshenko etc.) e, sobretudo, a resistência do povo russo foram fatores essenciais para a derrota do nazismo.

Ser e fazer
Em anos mais recentes, o quadro intelectual mudou radicalmente. Mais ainda, com a abertura dos arquivos do período soviético, foi possível ir a fundo no conhecimento de fatos e instituições daqueles anos, como é o caso dos gulags -rótulo genérico dos campos de trabalho forçado da União Soviética. Ao mesmo tempo, multiplicaram-se as comparações entre os regimes nazista e comunista.
Na introdução de seu excelente livro "Gulag - A History of the Soviet Concentration Camps" [Gulag - Uma História dos Campos de Concentração Soviéticos, 2003), a jornalista Anne Applebaum faz algumas referências comparativas sobre os dois sistemas concentracionários, marcando aproximações e diferenças. Em primeiro lugar, uma identidade básica. Os campos de concentração foram criados para encarcerar e liqüidar pessoas não pelo que elas tenham feito, mas pelo que elas eram, embora em um e outro caso prisioneiros políticos fossem internados minoritariamente, por vezes, em campos específicos. No caso da Alemanha, a raça representava o fator decisivo; no da União Soviética, predominava a ampla categoria dos "inimigos do povo". Como disse Stálin, "um Inimigo do Povo não é apenas alguém que pratica sabotagem, mas alguém que duvida da linha do Partido".
A partir daí, são muitas as diferenças. Em primeiro lugar, as balizas cronológicas. Os campos nazistas nasceram e morreram com o regime (1933-1945), tendo pois um curto e mortífero período de existência. Os soviéticos existiram desde 1921 até os primeiros anos da década de 1980, essas datas indicando que eles não foram um produto do stalinismo, embora Stálin tenha sido seu promotor mais sinistro.
Outro aspecto distintivo refere-se aos objetivos dos campos. No caso do nazismo, predominaram os objetivos ideológicos de extermínio, a curtíssimo ou a médio prazo, a tal ponto que trens carregados de vítimas chegaram a ter preferência sobre outros que transportavam mercadorias. Já no caso soviético, o gulag teve sobretudo objetivos econômicos. Applebaum afirma que, no início dos anos 50, o trabalho forçado era responsável por um terço da produção de ouro do país, tendo um papel significativo na extração de madeira, nas minas de carvão e nas indústrias.
Uma discussão sobre o número de vítimas mostraria cifras impressionantes, conhecidas no que se refere à Alemanha e bem menos no caso soviético. Segundo Applebaum, entre 1929, quando os gulags começaram sua maior expansão, até 1953 -ano da morte de Stálin- , algo em torno de 18 milhões de pessoas passaram pelo sistema, sem falar nos 6 milhões de exilados para regiões desérticas ou para as florestas siberianas.
Vale a pena retornar, por último, a um ponto comum, ou seja, o processo de desumanização das vítimas, por muitas formas, entre elas sua desqualificação como "seres imundos", "parasitas", "ratos", "vermes", sua transformação em "animais" obrigados a assim se comportar.
Guardadas as proporções, esse processo não traz à mente os "gusanos" de Fidel Castro ou o que se passa nas prisões iraquianas, nos dias de hoje?


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.


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