São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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O ESPETÁCULO DO CONTRADISCURSO


ARRASTÕES NAS PRAIAS DO RIO NO INÍCIO DOS ANOS 90 ESCANCARARAM A VIOLÊNCIA NAS PERIFERIAS DAS METRÓPOLES, QUE GANHA VISIBILIDADE DESDE ENTÃO E SE TORNA OBJETO DE GLAMOURIZAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO NAS OBRAS DE RAPPERS, ESCRITORES E CINEASTAS


Ivana Bentes
Micael Herschmann
especial para a Folha

Como interpretar a emergência e expansão de uma cultura rap na cena brasileira contemporânea? Depois da explosão do funk e hip hop nos anos 90, sua "criminalização" e posterior incorporação pela indústria da música, essa trilha sonora se traduz em imagens de rebeldia que chegam aos cinemas, em filmes como "O Invasor" (de Beto Brant, 2001), "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas" (de Marcelo Luna e Paulo Caldas, 2000) e "Orfeu" (de Cacá Diegues, 1999); passam pela MTV, na voz de grupos como Rappa, Racionais MC's, Sistema Negro e Sabotage; são incorporadas pela própria teledramaturgia: a novela "As Filhas da Mãe", da TV Globo (narrada eventualmente como um rap destituído de virulência); ou ganham visibilidade na participação do rapper Xis no "reality show" "Casa dos Artistas", do SBT.
Mas, para além dessa imagem midiática palatável da "atitude rapper", a batida e as letras pesadas que falam de tráfico de drogas, de culturas e de informação, de preconceito racial e social, de pobreza ganham um sentido mais sociopolítico, numa espécie de trilha sonora de tempos mais conflituosos, nos quais a idéia de conciliação social é substituída pelo discurso do confronto, afastando-se de certa vertente "cordial" do samba e da MPB. Trata-se, de certa maneira, da produção de uma espécie de contradiscurso que neutraliza, em alguma medida, a fala incriminatória dos noticiários, que não se cansam de associar os "gangsta raps" (os "proibidões") tocados nos bailes funk clandestinos do Rio de Janeiro à presença do narcotráfico nos morros e favelas da cidade e a ações criminosas, como a que levou à morte do repórter Tim Lopes.
Oscilando entre a condenação e sua glamourização no mercado, na passagem da música às imagens, do baile encravado no morro ou na periferia às telas da TV e do cinema, temos a emergência de novos sujeitos sociais portadores de um discurso: "Marginais midiáticos" que vêm se afirmando na cena cultural.
Não se trata apenas de evidenciar um novo imaginário social: o de um Brasil mais fragmentário e plural. A cultura da periferia ocupa a mídia com um novo discurso de rebeldia e potência, decisivo na mobilização e sedução das camadas juvenis, sejam elas da periferia ou não. E mais do que isso: vem se impondo como novo discurso com conotações políticas, para além dos guetos e faixas etárias. A postura rapper, os gorros enterrados na cabeça, os "manos", tatuagens, a agressividade juvenil, o discurso comunitário e coletivo, tudo é passível de ser traduzido simultaneamente como moda e "legítima ira social" que canta e exige mudanças.
O hip hop e o funk existem há algumas décadas no país -chegaram no embalo da cultura "black", nos anos 70- e mobilizam um segmento expressivo da juventude dos morros e periferias das cidades brasileiras. Analisar esses fenômenos culturais neste momento significa, por exemplo, tratar a música cantada por esses jovens dentro de um novo contexto, mais amplo, em que as "culturas das favelas" aparecem não simplesmente como subprodutos da violência social do país, mas como uma produção e um discurso capazes não só de espelhar a realidade "dura" dessas localidades, mas que também, de alguma forma, exprimem a reivindicação da ampliação da cidadania ao segmento social que habita essas áreas urbanas. O novo contexto começa a ser configurado com o acirramento do debate nacional sobre a violência urbana, deflagrado em 1992 e 93, entre outras ocorrências conflituosas, pelos arrastões nas praias da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. A partir desse "acontecimento fundador", poder-se-iam constatar frequentes processos de estigmatização/glamourização da cultura rap na mídia, que, juntamente com sua valorização no cenário internacional, permitiram que esses atores sociais colocassem em cena, na última década, um conjunto de questões que reforça a idéia de "pertencimento" e de identidade distintiva desses jovens, que passam a definir sua posição no mundo sobrepondo "estilo de música" e "estilo de vida".

Marginalidade difusa
A conquista e negociação de espaços e visibilidade em canais de diversão, circulação e comunicação diz respeito não só a funkeiros e b-boys, mas também a grupos proscritos de forma geral: favelados, desempregados e subempregados, uma marginalidade difusa que aparece na mídia de forma muito ambígua: por um lado, as representações associadas a essa marginalidade tendem a reificar a condição de marginalidade do grupo, o que, em contraste, serve para "naturalizar" a atuação repressiva das autoridades e dos órgãos de segurança pública, fazendo emergir na mídia e no debate político-intelectual o temor do "caos social". Por outro lado, à medida que a mídia os torna "visíveis", lhes permite, de certa forma, denunciar a condição de "proscritos" e reivindicar cidadania, trazendo à tona, para o debate na esfera pública, a discussão do lugar do pobre, do direito ao discurso e de acesso à cidade, colocando em pauta as contradições do processo de democratização do país. Da moda ao ativismo, da atitude à música e ao discurso sociopolítico, vemos emergir novos sujeitos do discurso, que saem de territórios estigmatizados da cidade e ascendem à esfera midiática, trazendo um discurso renovado, distante das instituições políticas mais tradicionais e próximo da esfera da cultura. Exemplo paradigmático desses novos discursos é o do rapper carioca MV Bill, que tem como forma de discurso e atuação o rap, o show, a performance, os videoclipes e também o cinema (o documentário "Di Menor", sobre as crianças no tráfico). Bill brinca com os discursos tradicionais e se auto-intitula MV (mensageiro da verdade), podendo se apresentar encarnando um traficante-pensador, como nos polêmicos clipes "Soldado do Morro" e "Traficando Informação"; líder político negro, nos debates sobre pobreza nas universidades; ou performer, exibindo um revólver na cintura durante o Free Jazz, lembrando-nos de seu cotidiano na favela ou colocando no revólver um lenço branco sob o grito-slogan: "Eu sou da paz!". Seria a tradução, para "tempos de cólera", do fenômeno da contracultura dos anos 60, em que slogans como "paz e amor" são destronados por um discurso bélico para o qual a paz é assegurada em grande medida por armas e aparato repressor? Os rappers poderiam ser considerados como uma espécie de porta-vozes das periferias e favelas: após a crise das vanguardas artísticas e intelectuais nos anos 70, emergiriam como novos intelectuais locais, orgânicos, forjados ao longo dos anos 80 e especialmente dos anos 90, no bojo de uma cultura popular ou minoritária já não idealizada pelas vanguardas e com maior autonomia. Esses novos sujeitos do discurso, como, por exemplo, o escritor Paulo Lins [autor do romance "Cidade de Deus", de 1997, Cia. das Letras," e os demais intelectuais e artistas saídos da periferia, destituem os tradicionais mediadores da cultura e, mais do que isso, disputam as mesmas verbas e financiamentos para projetos de cunho social, passam de objetos a sujeitos do discurso, outra novidade irônica que acaba com qualquer paternalismo remanescente dos 60/70: os novos marginalizados lutam para obter o "copyright" da sua própria miséria. O que já é uma realidade na música, ainda aparece de forma muito problemática em outras áreas da cultura, como a do cinema. Filmes como "Cidade de Deus" (baseado no livro de Paulo Lins), filme-sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo de jovens pobres se matando entre si, como num filme de gângsteres dos anos 30. Mais interessante e complexo é o trânsito do marginal em "O Invasor", que compartilha música, droga, sexo, atitude e funde valores da periferia com a cultura empresarial paulista. Cabe ressaltar que, mesmo os discursos "descritivos" sobre a pobreza, especialmente no cinema, na TV e no vídeo, desempenham um importante papel social: se, por um lado, podem funcionar como mero reforço de estereótipos, que associam pobreza a criminalidade, por outro lado abrem um campo importante de debate. Há, portanto, uma dimensão política dessas expressões culturais urbanas e estilos de vida elaborados pelas camadas menos privilegiadas da população de que o grande público ainda não se deu conta. Elas foram forjadas na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual e midiática e, infelizmente, são vistas frequentemente pelos intelectuais e pela classe média, especialmente no caso da música (e de outras expressões artísticas) e de sua visibilidade na TV, como parte de um conjunto de expressões "de baixo nível" e "grotescas", num discurso reativo e conservador, feito em nome do "bom gosto" e da "alta cultura".

Novas fronteiras
Assim a cultura rap tem conseguido não só produzir um contradiscurso como também traçar novas fronteiras socioculturais (e espaciais) que oscilam entre a exclusão e a integração: a) ao promover novas redes sociais, revitalizando velhos movimentos sociais e laços comunitários; b) ao ocupar nem sempre de forma tranquila espaços da cidade, inclusive as áreas nobres; c) ao denunciar e expor nas músicas o "avesso do cartão-postal" da cidade; d) ao possibilitar, por meio de seus eventos, o encontro entre diferentes segmentos sociais; e) ao amplificar ou conquistar visibilidade social através da articulação com a cultura institucionalizada e o mercado.
Certamente políticas públicas inteligentes devem necessariamente contemplar essas experiências culturais que emergem com grande força nos grandes centros e em diversas expressões artísticas, como música, teatro, vídeo e programas de estações de rádio produzidos por grupos locais. Seria preciso desenvolver políticas públicas que articulassem parcerias com artistas e empreendedores dessas áreas pobres de modo a romper com a lógica meramente assistencialista e privilegiar o potencial educativo, político e estético dessas produções, incrementando iniciativas como, por exemplo, a da companhia de teatro Nós do Morro, a Étnica de Dança, a rádio Favela, grupo Afro-Reagge, entre outras. Infelizmente não é essa a atitude que, em geral, o Estado vem adotando.
Entretanto, para além do discurso espetacularizado da repressão policial nos territórios da pobreza, é justamente essa produção e discurso marginal/local que ironicamente têm sido agenciados com frequência pela mídia, pelo público jovem e pelas organizações não-governamentais, que produzem modismos e vêm atestando a crescente polifonia urbana. Trata-se de um vigoroso discurso, que se afasta da lógica estatal e midiática de reforço das fronteiras, do enclausuramento e do apartheid social, discursos de "exclusão" e repressão (que clamam por mais policiamento, mais encarceramento) que promovem o medo do "outro". Em resumo, assistimos à emergência de um discurso sociopolítico forjado na própria cultura da periferia e "traficado" crescentemente pelo mercado.


Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará) e organizadora de "Cartas ao Mundo" (Companhia das Letras).
Micael Herschmann é professor de cultura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena" (editora UFRJ).


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