São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A política da profanação

O filósofo italiano Giorgio Agamben diz que a política externa norte-americana é o exemplo maior do Estado contemporâneo - uma máquina que produz a desordem e ganha legitimidade ao administrá-la

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade." Esta afirmação programática de Walter Benjamin resume bem o que anima o projeto intelectual de Giorgio Agamben nos últimos anos.
Responsável pela edição italiana das obras completas de Benjamin, ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente com Deleuze, de trabalhos sobre teoria literária e filosofia, este professor da Universidade de Verona, nascido em 1942, é atualmente um dos filósofos mais importantes de sua geração.
Uma das razões para tanto é, para além da multiplicidade de seus objetos de interesse, sua capacidade em fornecer um quadro de análises para a situação sócio-jurídica que marca a política contemporânea.
Partindo das vias abertas por Michel Foucault [1926-1984] por meio das análises dos mecanismos de normatização da vida na sociedade contemporânea, Agamben vem desenvolvendo um amplo estudo sobre os desdobramentos dos dispositivos do poder em vários livros que compõem a série "Homo Sacer".
No cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Que o espectro da "suspensão legal" da lei, que este reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o "motor imóvel" das democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que Agamben soube explorar como ninguém antes dele.
Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos são cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. O mesmo curso que levou Agamben a recusar-se a lecionar nos EUA a fim de protestar contra a política de segurança norte-americana.
Para ele, os Estados contemporâneos -especialmente os EUA-, mais do que garantidores e administradores da ordem, são máquinas de produção e gestão da desordem -que permitem intervenções que lhes dão legitimidade e poder. Agamben compara o mecanismo ao princípio teológico da Providência -segundo ele, a teoria do "governo divino" do mundo.
"O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados", ele afirma.
Mas ao analisar o problema do estado de exceção, o filósofo italiano não procura apenas dar conta de uma situação jurídico-política que parece se impor como regra cada vez mais universal para as sociedades contemporâneas. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização. É neste quadro que Giorgio Agamben se move.
É para falar sobre estas e outras questões que Agamben vem, pela primeira vez, ao Brasil, para palestras entre os dias 22 e 29 de setembro. A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha na semana passada.
 

Folha - O senhor possui atualmente um vasto campo de trabalho no interior do qual se cruzam estética, teoria da literatura, filosofia política, psicanálise, história e filosofia do direito. O senhor é também o responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin. Há questões comuns que orientam sua incursão nestes múltiplos campos de interesse?
Giorgio Agamben -
A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um "campo", onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade.
A configuração do que você chama de meus "múltiplos campos de interesse" depende pois da contingência capaz de determinar uma tensão na situação histórica concreta em que me encontro. De resto, trata-se do que, há um tempo atrás, era o mínimo esperado de uma pessoa culta -este a quem Nietzsche chamava "um bom europeu".
Não devemos esquecer, por exemplo, que é impossível haver filosofia sem filologia, da mesma forma como é impossível teoria sem história. Para mim, assim como para Foucault, a investigação histórica do passado é apenas a sombra da interrogação histórica sobre o presente. E atualmente, mais do que nunca, a arqueologia é a única via de acesso ao presente.

Folha - Qual é a trajetória de pesquisa que o levou a identificar, no estado de exceção, o fenômeno jurídico maior na compreensão da normatização da vida contemporânea?
Agamben -
Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente, o direito é, de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho. O outro é a teologia. Qual a razão desta escolha? Eu poderia responder -e isto não seria necessariamente uma brincadeira- que o direito e a teologia são os dois únicos domínios nos quais Foucault não trabalhou realmente, o que me dava uma certa liberdade.
Mas a verdade é que não é possível atualmente pensar a política e sua história sem se engajar em pesquisas arqueológicas que articulam o direito e a teologia. Não digo isto por acreditar em alguma espécie de primado destas disciplinas. O fato é que no interior dos mecanismos e relações de poder, conceitos jurídicos e teológicos continuam a agir de maneira mais ou menos consciente, e são seus funcionamentos e efeitos que me interessam.
Creio que Foucault tinha razão ao dizer que queria deixar de lado os ditos "universais" (o Estado, a Lei, a Soberania, o Poder), a fim de analisar o processo concreto e os dispositivos que realizam as relações de poder. Desta forma, ao trabalhar sobre o estado de exceção, não se tratava para mim de responder a questões como: "O que é o direito?", "o que é o Estado?", mas de procurar compreender o modo por meio do qual a máquina político-jurídica funciona.
Ou seja, não parto de questões como: "O que é e o que não é legal?", ou mesmo "o que é e o que não é justo?", mas "como se realiza a relação entre violência e direito?", "como é possível desativar tal relação?". Descobrir que o estado de exceção era, por assim dizer, o motor imóvel da máquina jurídica ocidental foi para mim muito instrutivo.

Folha - O senhor diz, em "Estado de Exceção", que devemos pensar a política para além do jurídico. Mas, se em nossas sociedades democráticas, como o senhor afirma, o estado de exceção é a regra, isto significaria que não há mais espaço político no interior do sistema parlamentar de representação? E, se devemos pensar a política para além do jurídico, devemos então abandonar a aspiração moderna de constituição de um Estado Justo?
Agamben -
Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituição de um Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente não me interessa. Não se trata mais, como era ainda legítimo na época de Rousseau, de escrever a Constituição da Polônia ou da Córsega. Deixo esta questão para os juristas criminais que acreditam poder escrever a Constituição democrática do Iraque. Ou aos tecnocratas ingênuos que acreditaram poder escrever a Constituição européia sem se perguntar se havia, em algum lugar, um poder constituinte que os autorizava. Pois é a própria relação entre política e direito que deve ser questionada. Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas.
De fato, nossa concepção de democracia ainda está muito dominada pelo paradigma do Estado de Direito, ou seja, pela idéia de que podemos estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual uma sociedade justa advém possível. Mas minhas pesquisas me mostraram que o problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz respeito ao governo.
Rousseau ainda acreditava ser capaz de liquidar o problema do governo ao vê-lo como poder executivo, como potência que "executa" o que a vontade geral estabeleceu. Trata-se de uma ingenuidade imperdoável. O verdadeiro ponto misterioso da política ocidental não é o Estado, não é a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o soberano, mas o ministro. Não o legislador, mas o funcionário.
A pesquisa na qual estou atualmente engajado diz respeito exatamente à tentativa de compreender o modo por meio do qual a máquina governamental ocidental funciona. Trata-se de olhar a política e o direito a partir de uma nova perspectiva na qual as hierarquias se invertem e o poder considerado executivo -a "polícia", no sentido lato- advém o problema central. Mas, mesmo aqui, não faço mais do que alargar o trabalho de Michel Foucault.

Folha - O sr. diz ainda que a declaração clara do estado de exceção está sendo substituída paulatinamente pela generalização do paradigma de segurança como técnica normal de governo. Os EUA seriam, no seu ponto de vista, um caso exemplar?
Agamben -
Em um de seus cursos no Collèqe de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. Para Quesnay, Turgot e os ministros fisiocratas, que nesta matéria foram os primeiros, não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental da política mundial. Como disse um funcionário da política italiana durante as investigações judiciárias que se seguiram às mortes na manifestação antiglobalização em Gênova: "O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem".
Parece-me evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente ("zones of turmoil", como dizem os estrategistas) que permitem intervenções constantes orientadas na direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.
É curioso como tudo isto se encontra em um dos paradigmas teológicos que tenho trabalhado: este que diz respeito à doutrina da Providência. Os conceitos de ordem e segurança foram elaborados como paradigmas de governo, pela primeira vez, no interior desta doutrina. Não devemos esquecer que a Providência ocupou a mente de filósofos e teólogos por quase 15 séculos, dos Estóicos até São Tomás, de Plutarco a Leibniz, de Boécio aos fisiocratas. A teoria da Providência não é outra coisa que a teoria do governo divino do mundo, ou seja, do melhor governo possível.
Por isto, a Providência não opera de modo violento ou miraculoso, mas, tal como nos governos democráticos, ela precisa do livre-arbítrio dos indivíduos. O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados. A Providência é, neste sentido, um paradigma da democracia moderna e não é surpreendente que ela tenha influenciado profundamente um pensador como Rousseau. O Estado moderno, no que ele tem de melhor quanto de pior, provém deste Estado-Providência.

Folha - O senhor fala, ao final de "Estado de Exceção", a respeito da necessidade de abrirmos espaço a uma "violência pura" capaz de expor e de cortar o vínculo entre violência e direito. Esta idéia de "violência pura" é algo como uma idéia reguladora ou o senhor tem em mente situações revolucionárias concretas que teriam o valor de paradigma?
Agamben -
É importante precisar o que devemos entender por "pura" quando se fala de violência. Não se trata, em absoluto, de um caráter ou de uma propriedade substancial próprio a certos tipos de atos violentos, isto em detrimento de outros. Como Benjamin disse muito claramente, a pureza de um ser ou de uma coisa nunca reside neste próprio ser, nunca está na origem, mas depende da relação entre este ser e algo de externo. No nosso caso, trata-se do direito.
Benjamin definia como "pura" esta violência que quebra a relação entre violência e direito. Não se trata aqui de uma "violência criadora" (como é o caso, por exemplo, do poder constituinte que cria um novo direito), mas de uma violência que interrompe e depõe o direito. Por outro lado, não se trata de uma idéia reguladora.
O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade.
E talvez "política" seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas.
Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de "profanação" que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem.


Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).


Texto Anterior: + autores: A ressaca do fordismo
Próximo Texto: Conceitos de Agamben
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.