São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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Obra de T.E. Lawrence relata seu rebaixamento voluntário de herói de guerra solitário a recruta e revela seu desejo de "ser um entre os milhares"

A liberdade na dor

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil não pensar em "Lawrence da Arábia" (1962), o filme de David Lean, quando se ouve falar em T.E. Lawrence (1888-1935), autor do monumental "Os Sete Pilares da Sabedoria" (Record), uma das obras-primas da literatura do século 20, e deste bem menos ambicioso "A Matriz" ("The Mint"), relato de caserna escrito a partir de 1922, publicado apenas em 1955 e agora lançado no Brasil com tradução de Fernando Monteiro. Nele, o autor conta a sua experiência tardia como soldado na Força Aérea Britânica (R.A.F.).
É difícil esquecer a figura ao mesmo tempo frágil, heróica e trágica, encarnada por Peter O'Toole no filme de Lean: o inglês formado em arqueologia em Oxford, leitor de Jules Laforgue e Jens Peter Jacobsen, que se apaixona pela causa das tribos do deserto e, guiado por um sentido quase místico de justiça, insufla a guerrilha dos árabes contra o domínio otomano durante a Primeira Guerra.
A confusão entre o homem e a lenda reproduzida não só pelo filme explica, em princípio e em parte, a razão que teria levado Thomas Edward Lawrence a renunciar ao próprio nome e à fama para se alistar na R.A.F., em 1922, com uma identidade falsa, como simples recruta, submetendo-se a todas as humilhações, assumindo por vontade própria o lugar do subalterno, quando teria podido ocupar algum cargo de poder no Império Britânico.
"Estava cansado do nome Lawrence (...), particularmente de "Lawrence da Arábia", que se tornara um clichê romântico e um grande aborrecimento para ele. O culto ao herói não parece apenas incomodar Lawrence, mas, por causa de sua crença genuína na própria fraude enquanto objeto desse culto, o faz sentir-se impuro", escreveu Robert Graves, em "Lawrence e os Árabes".
A opção pelo despojamento, porém, serviu apenas para reforçar o mito e o mistério. É difícil para o leitor de "A Matriz" não se deixar contagiar pelo efeito romanesco da situação: um dos grandes heróis do século 20 decide passar por simples recruta, alistando-se na Força Aérea, para se livrar da fama da sua alcunha e do mito da sua imagem. Um mito ambulante que, depois de tudo por que passou, recolhe-se ao anonimato, despoja-se das glórias e se rebaixa à tropa.
É difícil para o leitor não especular sobre o que há por trás dos atos desse personagem atormentado, enigmático e conradiano que se quer "igual aos outros", mas que ao mesmo tempo menciona, sem no entanto revelá-lo, "o motivo mais poderoso (...), de ordem pessoal", "o ímpeto secreto" que o levou a lutar ao lado dos árabes pela conquista de Damasco ("Os Sete Pilares da Sabedoria") ou a fuga de "uma loucura cometida em 1918", pois "todo homem que se alista (...) reconhece que fracassou na vida. (...) Cada um deles esconde alguma mágoa, alguma ferida aberta no seu passado".

Desilusão
Talvez a maior ferida de Lawrence tenha sido aberta pelo Tratado de Versalhes, quando ele compreendeu que fora abandonado pelos próprios ingleses. Fora usado como intermediário entre os beduínos e o Exército britânico na aliança contra os turcos. Com o armistício, viu-se obrigado a quebrar a promessa que fizera aos árabes, em nome dos ingleses, e a se resignar à nova configuração geopolítica do Oriente Médio dividido em zonas de influência britânica e francesa. O sonho de uma nação árabe independente tinha se transformado em miragem no deserto.
A desilusão rendeu um livro impressionante ("Os Sete Pilares da Sabedoria" foi escrito logo depois da guerra e publicado em edição não-comercial em 1926 -a tradução brasileira, de 1938, de C. Machado, foi reeditada pela Record em 2000), como se o papel mítico assumido por Lawrence só pudesse se realizar por completo na tragédia de um homem só, assombrado pelo fantasma da traição.
O próprio autor tendia a ver-se como personagem. Sobre sua tortura na mão dos turcos, por exemplo, ele escreveu: "Firmei no propósito de conhecer o sofrimento todo, até morrer, sem ser mais ator, e sim espectador do drama (...), o âmago da minha vida parecia elevar-se por meio dos nervos dilacerados, e ser expulso do corpo por este último transe indescritível". Há passagens ainda mais exaltadas e explícitas sobre a vocação mística e masoquista do autor/personagem, seu fascínio pela sensualidade heróica e pelo êxtase do sacrifício, que ecoa em tom menor em "A Matriz".
Sob o disfarce do soldado, Lawrence busca reencontrar "o verme escondido no fundo". E se por um lado há indignação no seu relato de caserna, que serve de denúncia contra o arbítrio e os maus-tratos a que estavam submetidos os soldados, por outro ele é também o testemunho da sua necessidade interior e secreta, quase sexual, de viver "a experiência da servidão" até as últimas conseqüências, de fundir-se com a tropa como num corpo único, de "ser um entre os milhares", de comungar da solidariedade dos que sofrem o rebaixamento mais absoluto, a crueldade e o absurdo dos desmandos.
Em "A Matriz", de um modo enigmático, aparentemente contraditório e paradoxal, a imaginação está atrelada à experiência da obediência e da submissão. É a imaginação masoquista desse autor que buscou o êxtase no sofrimento. E dele se alimentou para criar uma obra radical e singular.


A Matriz
320 págs., R$ 41,90 de T.E. Lawrence. Tradução de Fernando Monteiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).



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