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Obra de T.E. Lawrence relata seu rebaixamento voluntário de herói de
guerra solitário a recruta e revela seu desejo de "ser um entre os milhares"
A liberdade na dor
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
É
difícil não pensar em "Lawrence da Arábia" (1962), o
filme de David Lean, quando
se ouve falar em T.E. Lawrence (1888-1935), autor do monumental "Os Sete Pilares da Sabedoria"
(Record), uma das obras-primas da
literatura do século 20, e deste bem
menos ambicioso "A Matriz" ("The
Mint"), relato de caserna escrito a
partir de 1922, publicado apenas em
1955 e agora lançado no Brasil com
tradução de Fernando Monteiro.
Nele, o autor conta a sua experiência
tardia como soldado na Força Aérea
Britânica (R.A.F.).
É difícil esquecer a figura ao mesmo tempo frágil, heróica e trágica,
encarnada por Peter O'Toole no filme de Lean: o inglês formado em arqueologia em Oxford, leitor de Jules
Laforgue e Jens Peter Jacobsen, que
se apaixona pela causa das tribos do
deserto e, guiado por um sentido
quase místico de justiça, insufla a
guerrilha dos árabes contra o domínio otomano durante a Primeira
Guerra.
A confusão entre o homem e a lenda reproduzida não só pelo filme explica, em princípio e em parte, a razão que teria levado Thomas Edward Lawrence a renunciar ao próprio nome e à fama para se alistar na
R.A.F., em 1922, com uma identidade falsa, como simples recruta, submetendo-se a todas as humilhações,
assumindo por vontade própria o
lugar do subalterno, quando teria
podido ocupar algum cargo de poder no Império Britânico.
"Estava cansado do nome Lawrence (...), particularmente de "Lawrence da Arábia", que se tornara um clichê romântico e um grande aborrecimento para ele. O culto ao herói
não parece apenas incomodar Lawrence, mas, por causa de sua crença genuína na própria fraude enquanto objeto desse culto, o faz sentir-se impuro", escreveu Robert
Graves, em "Lawrence e os Árabes".
A opção pelo despojamento, porém, serviu apenas para reforçar o
mito e o mistério. É difícil para o leitor de "A Matriz" não se deixar contagiar pelo efeito romanesco da situação: um dos grandes heróis do
século 20 decide passar por simples
recruta, alistando-se na Força Aérea,
para se livrar da fama da sua alcunha
e do mito da sua imagem. Um mito
ambulante que, depois de tudo por
que passou, recolhe-se ao anonimato, despoja-se das glórias e se rebaixa
à tropa.
É difícil para o leitor não especular
sobre o que há por trás dos atos desse personagem atormentado, enigmático e conradiano que se quer
"igual aos outros", mas que ao mesmo tempo menciona, sem no entanto revelá-lo, "o motivo mais poderoso (...), de ordem pessoal", "o ímpeto
secreto" que o levou a lutar ao lado
dos árabes pela conquista de Damasco ("Os Sete Pilares da Sabedoria") ou a fuga de "uma loucura cometida em 1918", pois "todo homem
que se alista (...) reconhece que fracassou na vida. (...) Cada um deles
esconde alguma mágoa, alguma ferida aberta no seu passado".
Desilusão
Talvez a maior ferida de Lawrence
tenha sido aberta pelo Tratado de
Versalhes, quando ele compreendeu
que fora abandonado pelos próprios
ingleses. Fora usado como intermediário entre os beduínos e o Exército
britânico na aliança contra os turcos.
Com o armistício, viu-se obrigado a
quebrar a promessa que fizera aos
árabes, em nome dos ingleses, e a se
resignar à nova configuração geopolítica do Oriente Médio dividido em
zonas de influência britânica e francesa. O sonho de uma nação árabe
independente tinha se transformado
em miragem no deserto.
A desilusão rendeu um livro impressionante ("Os Sete Pilares da Sabedoria" foi escrito logo depois da
guerra e publicado em edição não-comercial em 1926 -a tradução
brasileira, de 1938, de C. Machado,
foi reeditada pela Record em 2000),
como se o papel mítico assumido
por Lawrence só pudesse se realizar
por completo na tragédia de um homem só, assombrado pelo fantasma
da traição.
O próprio autor tendia a ver-se como personagem. Sobre sua tortura
na mão dos turcos, por exemplo, ele
escreveu: "Firmei no propósito de
conhecer o sofrimento todo, até
morrer, sem ser mais ator, e sim espectador do drama (...), o âmago da
minha vida parecia elevar-se por
meio dos nervos dilacerados, e ser
expulso do corpo por este último
transe indescritível". Há passagens
ainda mais exaltadas e explícitas sobre a vocação mística e masoquista
do autor/personagem, seu fascínio
pela sensualidade heróica e pelo êxtase do sacrifício, que ecoa em tom
menor em "A Matriz".
Sob o disfarce do soldado, Lawrence busca reencontrar "o verme escondido no fundo". E se por um lado
há indignação no seu relato de caserna, que serve de denúncia contra o
arbítrio e os maus-tratos a que estavam submetidos os soldados, por
outro ele é também o testemunho da
sua necessidade interior e secreta,
quase sexual, de viver "a experiência
da servidão" até as últimas conseqüências, de fundir-se com a tropa
como num corpo único, de "ser um
entre os milhares", de comungar da
solidariedade dos que sofrem o rebaixamento mais absoluto, a crueldade e o absurdo dos desmandos.
Em "A Matriz", de um modo enigmático, aparentemente contraditório e paradoxal, a imaginação está
atrelada à experiência da obediência
e da submissão. É a imaginação masoquista desse autor que buscou o
êxtase no sofrimento. E dele se alimentou para criar uma obra radical
e singular.
A Matriz
320 págs., R$ 41,90
de T.E. Lawrence. Tradução de Fernando
Monteiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/
2585-2000).
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