São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005 |
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+ política O governo Lula atualiza a forma de poder tradicional do Brasil, própria do capitalismo no país, em que o dinheiro e as relações pessoais se entrelaçam para saquear a nação, "empobrecer e despolitizar o povo" A implosão da República
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Neste caso, a investigação atingiu alto executivo da indústria e assessor do governo em um plano de reforma econômica que afrontou a classe operária alemã. Esse funcionário demitiu-se, negando seus malefícios (Jeffrey Fleishman, "Corporate Corruption Rattles Germany", "Los Angeles Times", 24/8/ 2005). Ciranda infernal O termo "Poderoso Brasil", acima, aparece na estratégia para manter a supremacia americana no continente, sem referência aos programas porventura a nós destinados. Uma só alusão é feita ao Rio de Janeiro e aos contatos com os "agitadores" locais. Embora dissimuladas, essas práticas deixaram indícios de nossa participação em sua infernal ciranda. Seus marcos aqui subsistem. Desde o governo Dutra, passando por JK e pelo "milagre econômico", crescentes dificuldades e continuadas situações recessivas levaram ao labirinto de créditos, dívidas, usura, derrama, confisco, retumbando a exigência de forte ajuste fiscal e aperto monetário visando "estabilizar" a economia, com o Fundo Monetário Internacional no horizonte. Com Fernando Henrique Cardoso, as privatizações legitimaram o pleno direito de passagem pelos encraves de bens públicos, notadamente com a cessão de negócios estatais lucrativos e com o socorro a bancos, eximindo-se das atribuições básicas do governo. Este guardou os seus segredos e manteve as aparências de fé pública. Dólares e euros, desde então, acotovelam-se nessa cornucópia. O confisco do patrimônio público cresceu, férreo, com Lula. O clichê justificativo das decisões financeiras repete o gárrulo refrão: "Estabilidade da economia". Equilíbrio "em favor de quem e para fazer o quê" é a pergunta que se opõe às certezas abstratas, cuja resposta, nesse caso, aponta para o saque da riqueza produzida no país. Os juros excessivos e tributações exorbitantes infletem para o inexorável "superávit primário" destinado a "honrar" as dívidas que, pagas às expensas do cidadão e à custa de suas carências, foram contraídas sem controle civil de sua gênese ou fins. Palocci Esse teor abstrato sela a entrevista coletiva de Antonio Palocci, alardeando os "fundamentos sólidos da economia". Sua autojustificativa consagra o "mercado tranqüilo", as grandes exportações, os agronegócios prósperos, as estatísticas oficiais dóceis e escamoteia a indústria lesada, o comércio parado, o desemprego renitente, a pobreza contumaz, as lacunas em educação e saúde, e por aí afora. O elogio da "economia", abstraída de outros campos, funda o discurso que "blinda" Palocci e Lula, sem que se aponte as forças que a mantém e o limite de seus resultados ou se atente para as decorrentes exclusões e queda nos níveis vitais. Reside exatamente aí, na apropriação lesiva de recursos alheios confiados a eles em virtude do cargo, no monopólio do poder para a pilhagem do povo, a mais formidável corrupção, aberta e legalizada, que implode a soberania da República. As demais violações, superlativas ou mesquinhas, são resultados. O circo de improbidades que assistimos é, pois, historicamente definido nas condições presentes, as quais encontraram, porém, solo fértil em nossa ética política, afeita à mistura entre público e privado e pródiga nas correlatas vantagens. O amálgama entre dinheiro e favor, forma de dominação peculiar à gênese do capitalismo no Brasil, vigora sempre. O atual governo e seu partido reeditaram as formas de poder que entrelaçam moeda e relações pessoais. No PT, a cobiça de recursos partidários e a modéstia dos bens particulares, face aos custos eleitorais e às promessas do poder, abriram as portas ao subterfúgio: cavar negócios, dar e receber, pedir e tomar. A cupidez subjetiva completa o quadro. Condutas desse jaez promovem explorações nas franjas da ilegalidade (lixo ou bingo), com sua dupla face, voltada para o partido e para seus dirigentes. Mas Janus complicou-se: em algum ponto, projetos políticos e ambições individuais pactuaram com estratégias econômico-financeiras de porte mundial. As dívidas contraídas nesses acordos são remuneradas à custa do "poderoso Brasil": riquezas imensas e trabalho colossal nutrem o fantástico "superávit primário" que seduz os patrocinadores do poder, vicariamente exercido por seus empregados, nossos governantes. A "economia" não é absoluta, jamais pode ser ou não ser "contaminada" pela política: ela "é" uma política, cujos benefícios não abarcam o indefinido Brasil da oratória oficial, mas limitam-se a grupos precisos. Sem razão A burocracia petista, nas atribuições oficiais, esvaziou-se até mesmo da racionalidade constitutiva desse aparato: inexiste hierarquia eficaz, especialização de funções e cargos, competência profissional, eficiência, fins institucionalizados. Os quadros do governo, com poucas exceções, são impermeáveis ao objeto que administram. A burocracia assim vivida é inapta para o Estado, indiferente ao saber, estéril. Lula, ícone desse contra-senso, louva a ignorância e encarece o analfabetismo num universo dominado pelo conhecimento. Palocci compõe um exemplo mais circunspecto. Ao rebater a denúncia de propina, declarou jamais ter contemplado outro "negócio" que o serviço público. De fato, seu período médico é parco (5 anos) face à carreira de político profissional: vereador (aos 21 anos), deputado estadual e federal, presidente do PT paulista, coordenador de campanha, ministro. Sua formação técnica escapa ao cargo que hoje ocupa. Daí o infortúnio desse grupo: os Delúbio, Berzoini, Gushiken, Dirceu, Genoino, Lula, pouco ou nunca se empenharam em criações materiais ou do espírito, presos à máquina do partido ou sindicato e a um poder inane, atento em seduzir a todos, dos miseráveis aos poderosos da terra, a aprestá-los em nichos apaziguadores. Nem se pode julgar, como alguns petistas, que indivíduos faltaram à fé jurada. Traídos foram os eleitores: em vez de estadistas com projeto político, receberam burocratas autoritários e subservientes, com típica vocação de "aparatchik". Esses atores encenam a decadência da democracia, invertendo, em suas condutas, valores básicos. Assim, a reforma da Previdência -rápida em confiscar funcionários menores ou mal representados, célere em ceder a corporações fortes como a magistratura ou o Ministério Público- é dita corajosa, por romper "privilégios", quando de fato, pusilânime, expropriou indefesos. A covardia torna-se bravura. Outra pirueta nessa área, onde os saldos positivos do sistema alimentam o inexorável "superávit primário": o excedente converte-se em "rombo". Idênticas inversões permeiam as negativas de corrupção. Todos repelem as acusações, para logo serem desmentidos por testemunhos ou fatos. Todos exaltam suas façanhas: lutas épicas contra a ditadura, por José Dirceu, proezas macroeconômicas, por Palocci. As glórias passadas ou os brilhos presentes justificariam os males escondidos. O vício transforma-se em virtude, o réu converte-se em herói. O ardil da negação absoluta ("nunca", "jamais") repete-se na entrevista de Palocci, que contesta ter firmado contratos -citou dois- favorecendo uma empresa de lixo. Seriam anteriores à sua administração. Ao asseverar essa impossibilidade, elidiu um terceiro ato, relativo à mesma empresa, assinado em seu governo. Argüido por tal silêncio, alegou (via assessores) que se calara porque o contrato não fora "objeto de questionamento". Neste caso, a falsidade não está no explicitado, mas no omitido: a mentira converte-se em verdade. Relações venais de poder organizam esse campo de forças, mediante procedimentos legalizados, "transparentes", dentro da normalidade. Nessa pantomima de honradez entranha-se a conduta perversa: saquear o país, empobrecer e despolitizar o povo, destruir esperanças, distorcer direitos constitucionais, como promete a "flexibilização" trabalhista. Mais inversões: prega-se a caridade (Fome Zero e outras mercês) e pratica-se a inclemência, cortejam-se grandes interesses. A conivência com estes municia, no mínimo, o caixa dois. No desenlace desses processos, como em tempos coloniais, esvai-se a riqueza, drenada para canais exóticos. Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular aposentada dos departamento de filosofia da Unicamp e da USP, é autora de, entre outras obras, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Editora Unesp). Texto Anterior: + réplica: Doutores e agregados Próximo Texto: + psicanálise: Ódio ao divã Índice |
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