São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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OUVIR A POLÍTICA

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos turbulentos dias que correm, vários têm sido os apelos, em rádios, revistas ou jornais, para que os psicanalistas tragam alguma luz ao que vem sucedendo. Como se só a psicanálise pudesse dar conta do desvario ideológico que vem acometendo nossa política. Diante do esgotamento do discurso político é preciso buscar outro qualquer. Busca-se compreender o humano em seus baixos instintos, na sua avidez, na sua miséria.
Mas é preciso não cair nessa sedutora armadilha. Quando Lula mesmo afirma que "o povo brasileiro precisa de um pai", quando é tão óbvio o desgaste dos jargões psicanalíticos, nosso papel, como psicanalistas, só pode ser a busca do político. Maria Rita Kehl e Contardo Calligaris, cuidadosamente, têm procurado discernir e denunciar as armadilhas que o inconsciente vem tramando na política.
Mas, não raramente, em sua história, a psicanálise se colocou como portadora da verdade última, na medida em que sabe do mundo do desejo. Lacan mesmo queria mudar os ideais de ciência e elevar a psicanálise ao estatuto de ciência ideal, no lugar da física. O fato é que tem sido bastante freqüente buscar a compreensão do Brasil a partir de estruturas clínicas psicanalíticas. Alguns psicanalistas pensaram o Brasil como um país com uma falha originária na possibilidade de simbolização e, portanto, com uma vocação para a não-lei, para a perversão. Tudo isso que estamos vivendo só viria confirmar uma tal visão.
Por que será que nós, que sempre questionamos uma concepção unificadora do conceito de identidade, vemo-nos tomados pela busca de uma estrutura psicopatológica unificante para pensar o Brasil?
Implícita nas construções psicanalíticas sobre o Brasil está a concepção do coletivo como uma formação do inconsciente, como um sintoma. É essa a tese defendida por Gerard Pommier no livro "Freud Apolítico?" (Artes Médicas, 1986), onde procura demonstrar que a constituição do sujeito por meio do espelho tem a mesma estrutura das massas tal como foi exposta por Freud em "Psicologia das Massas e Análise do Eu": o sujeito não pode ver a si próprio, encontra sua própria imagem no semelhante e assim constitui a massa.
A constituição do sujeito passa a embasar toda uma concepção da política e da constituição do Estado. Se o coletivo é uma formação do inconsciente, a oposição do individual e do social, do privado e do político deixaria de existir. Logo, fica justificado usar dos mesmos parâmetros que utilizamos em nossa clínica psicanalítica para pensar o político.
Jean Allouch, no polêmico livro "Etificação da Psicanálise" (Cia. de Freud, 1997) -causou escândalo, foi chamado de fascista, direitista-, aponta importantes questões: a nação é sujeito? É possível deitá-la no divã?
Octávio Souza ("Cultura da Ilusão", Contra-Capa, 1997) aponta o quanto os psicanalistas cada vez mais voltam-se para questões de âmbito mais social: há psicanalistas que consideram a psicanálise como uma opção ética singular, e psicanalistas que vêem, dentro da psicanálise, os embates entre as opções éticas existentes na contemporaneidade; ou seja, há os que teorizam sobre a ética da psicanálise (os que se alinhariam mais claramente junto ao pensamento lacaniano) e os que pensam a ética na psicanálise. De qualquer modo, de um modo ou outro, a psicanálise estaria autorizada a pensar o social.

Sonho totalitário
Em sua fala no "Segundo Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise", ocorrido em São Paulo em outubro de 1993, Ricardo Goldenberg afirmou que a ética que rege o trabalho em psicanálise não pode ser psicanalítica. Ou seja, que cada psicanalista teria seu estilo e/ou sua ética. A psicanálise poderia revelar "as condições de enunciação de uma ética determinada, mas pretender que seja uma ética torna-se um sonho totalitário".
Em Paris, 2000, Derrida abre o encontro dos Estados Gerais da Psicanálise e dela cobra um engajamento nas transformações do mundo contemporâneo, uma vez que seu funcionamento é sem álibi. Derrida está interessado nas novas formas da crueldade, há lições a tirar da hipótese de "uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso que se chama, obscuramente, crueldade". Freud se torna político na discussão do sentido da crueldade. É preciso discutir o para-além dos princípios, o para-além da pulsão de morte. Derrida mostra como o saber psicanalítico não tem como condenar -seja a pulsão de crueldade, seja a de soberania.
Enquanto saber, o saber psicanalítico é indecidível, a decisão implica um salto para fora do saber psicanalítico. Uma ética fora do saber psicanalítico. O que, para Derrida, não quer dizer que não haja relação entre psicanálise e ética. Essa é uma tarefa necessária: levar em conta a razão psicanalítica na constituição dessa ética. Mais uma vez, a psicanálise tem a verdade sobre todas as verdades. Mais uma vez, na proposta derridadiana, o sonho de um saber unificador. Mesmo que o diferir permanente caracterize esse saber...
Saber que estamos imersos em uma realidade onde o sonho é cada vez mais difícil obriga-nos à constatação cotidiana de que o inconsciente sempre está em permanente movimento de fuga, nunca onde esperamos que esteja. Hoje, ser psicanalista engajado no mundo é resgatar o discurso político. Já que ele anda tão desaparecido da política.


Miriam Chnaiderman é psicanalista, ensaísta e documentarista.


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