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OUVIR A POLÍTICA
MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nos turbulentos dias que
correm, vários têm sido os
apelos, em rádios, revistas
ou jornais, para que os psicanalistas tragam alguma luz ao que
vem sucedendo. Como se só a psicanálise pudesse dar conta do desvario
ideológico que vem acometendo
nossa política. Diante do esgotamento do discurso político é preciso
buscar outro qualquer. Busca-se
compreender o humano em seus
baixos instintos, na sua avidez, na
sua miséria.
Mas é preciso não cair nessa sedutora armadilha. Quando Lula mesmo afirma que "o povo brasileiro
precisa de um pai", quando é tão óbvio o desgaste dos jargões psicanalíticos, nosso papel, como psicanalistas, só pode ser a busca do político.
Maria Rita Kehl e Contardo Calligaris, cuidadosamente, têm procurado
discernir e denunciar as armadilhas
que o inconsciente vem tramando
na política.
Mas, não raramente, em sua história, a psicanálise se colocou como
portadora da verdade última, na
medida em que sabe do mundo do
desejo. Lacan mesmo queria mudar
os ideais de ciência e elevar a psicanálise ao estatuto de ciência ideal, no
lugar da física. O fato é que tem sido
bastante freqüente buscar a compreensão do Brasil a partir de estruturas clínicas psicanalíticas. Alguns
psicanalistas pensaram o Brasil como um país com uma falha originária na possibilidade de simbolização
e, portanto, com uma vocação para a
não-lei, para a perversão. Tudo isso
que estamos vivendo só viria confirmar uma tal visão.
Por que será que nós, que sempre
questionamos uma concepção unificadora do conceito de identidade,
vemo-nos tomados pela busca de
uma estrutura psicopatológica unificante para pensar o Brasil?
Implícita nas construções psicanalíticas sobre o Brasil está a concepção do coletivo como uma formação
do inconsciente, como um sintoma.
É essa a tese defendida por Gerard
Pommier no livro "Freud Apolítico?" (Artes Médicas, 1986), onde
procura demonstrar que a constituição do sujeito por meio do espelho
tem a mesma estrutura das massas
tal como foi exposta por Freud em
"Psicologia das Massas e Análise do
Eu": o sujeito não pode ver a si próprio, encontra sua própria imagem
no semelhante e assim constitui a
massa.
A constituição do sujeito passa a
embasar toda uma concepção da
política e da constituição do Estado.
Se o coletivo é uma formação do inconsciente, a oposição do individual
e do social, do privado e do político
deixaria de existir. Logo, fica justificado usar dos mesmos parâmetros
que utilizamos em nossa clínica psicanalítica para pensar o político.
Jean Allouch, no polêmico livro
"Etificação da Psicanálise" (Cia. de
Freud, 1997) -causou escândalo,
foi chamado de fascista, direitista-,
aponta importantes questões: a nação é sujeito? É possível deitá-la no
divã?
Octávio Souza ("Cultura da Ilusão", Contra-Capa, 1997) aponta o
quanto os psicanalistas cada vez
mais voltam-se para questões de
âmbito mais social: há psicanalistas
que consideram a psicanálise como
uma opção ética singular, e psicanalistas que vêem, dentro da psicanálise, os embates entre as opções éticas
existentes na contemporaneidade;
ou seja, há os que teorizam sobre a
ética da psicanálise (os que se alinhariam mais claramente junto ao pensamento lacaniano) e os que pensam
a ética na psicanálise. De qualquer
modo, de um modo ou outro, a psicanálise estaria autorizada a pensar
o social.
Sonho totalitário
Em sua fala no "Segundo Encontro
Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise", ocorrido em São
Paulo em outubro de 1993, Ricardo
Goldenberg afirmou que a ética que
rege o trabalho em psicanálise não
pode ser psicanalítica. Ou seja, que
cada psicanalista teria seu estilo e/ou
sua ética. A psicanálise poderia revelar "as condições de enunciação de
uma ética determinada, mas pretender que seja uma ética torna-se um
sonho totalitário".
Em Paris, 2000, Derrida abre o encontro dos Estados Gerais da Psicanálise e dela cobra um engajamento
nas transformações do mundo contemporâneo, uma vez que seu funcionamento é sem álibi. Derrida está
interessado nas novas formas da
crueldade, há lições a tirar da hipótese de "uma irredutível pulsão de
morte que parece inseparável disso
que se chama, obscuramente, crueldade". Freud se torna político na discussão do sentido da crueldade. É
preciso discutir o para-além dos
princípios, o para-além da pulsão de
morte. Derrida mostra como o saber
psicanalítico não tem como condenar -seja a pulsão de crueldade, seja a de soberania.
Enquanto saber, o saber psicanalítico é indecidível, a decisão implica
um salto para fora do saber psicanalítico. Uma ética fora do saber psicanalítico. O que, para Derrida, não
quer dizer que não haja relação entre
psicanálise e ética. Essa é uma tarefa
necessária: levar em conta a razão
psicanalítica na constituição dessa
ética. Mais uma vez, a psicanálise
tem a verdade sobre todas as verdades. Mais uma vez, na proposta derridadiana, o sonho de um saber unificador. Mesmo que o diferir permanente caracterize esse saber...
Saber que estamos imersos em
uma realidade onde o sonho é cada
vez mais difícil obriga-nos à constatação cotidiana de que o inconsciente sempre está em permanente movimento de fuga, nunca onde esperamos que esteja. Hoje, ser psicanalista engajado no mundo é resgatar o
discurso político. Já que ele anda tão
desaparecido da política.
Miriam Chnaiderman é psicanalista, ensaísta e documentarista.
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