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Nem mito nem realidade
PUBLICADO EM SEIS LÍNGUAS EM 1941, "BRASIL - UM PAÍS DO FUTURO", DE STEFAN ZWEIG,
CRIOU UMA DAS MAIS PODEROSAS E DURADOURAS MITOLOGIAS SOBRE A NAÇÃO
Há um grande
inimigo
da vitória sobre
o vira-latismo,
a invasão
do oba-obismo;
nada está
garantido
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Bruno Domingos - 2.out.09/Reuters
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Banhista toma sol na praia de Copacabana em 2 de outubro,
dia em que o Rio foi eleito sede da Olimpíada de 2016
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nos dias que correm, não há como
não nos lembrarmos de Stefan
Zweig e de seu
"Brasil - Um País do Futuro",
publicado em 1941.
Como se sabe, Zweig, um judeu austríaco, conheceu o Rio
de Janeiro em 1936 e voltou
com a mulher quatro anos depois, fugindo dos nazistas e
abandonando uma Europa envolvida em sangrenta guerra
motivada em parte por ódios
raciais.
O país o fascinara desde o
primeiro encontro. Sobretudo,
causou-lhe forte impressão a
imensa salada étnica que viu
nas ruas do Rio de Janeiro.
Esse impacto inicial não esmoreceu até sua morte e a da
mulher, em Petrópolis (RJ),
em 1942. Ele refletiu-se com
nitidez no apanhado que fez da
história brasileira no primeiro
capítulo do livro.
Os fatos são tirados dos manuais conhecidos. Mas o viés
da narrativa é o mesmo do livro
do conde Affonso Celso, "Por
Que Me Ufano do Meu País",
publicado em 1900.
O povo brasileiro seria dotado de um caráter congênito em
que sobressairiam a tolerância,
sobretudo a racial, o espírito de
conciliação, a tendência à solução pacífica dos conflitos internos e externos.
A essas qualidades se acrescentava o dom de uma natureza rica e generosa. Com tais
atributos, o Brasil estava, segundo ele, destinado a apresentar ao mundo, sobre os escombros da Europa, um novo
modelo de civilização. O Brasil
era o país do futuro.
O livro de Zweig inscreve-se
em longa tradição nacional que
vem alternando, em termos extremados, visões negativas e
positivas de nosso povo. Os que
só veem nele qualidades foram
chamados de ufanistas, como
Affonso Celso, ou, em linguagem popular, de "turma do
oba-oba". Os que nele só enxergam mazelas foram estigmatizados por Nelson Rodrigues
como vítimas do complexo de
vira-lata.
De fato, e para ficarmos apenas no período republicano,
para cada Affonso Celso houve
um Manuel Bomfim; para cada
Oliveira Vianna ou Paulo Prado houve um Gilberto Freyre;
para cada Raymundo Faoro
houve um Darcy Ribeiro.
Em contraste, sobre a terra
houve unanimidade desde
Américo Vespúcio: é grande, rica e bonita por natureza.
Nosso motivo de orgulho nacional, pesquisas o demonstraram, passou a ser a natureza.
Futebol e euforia
Criou-se um paradoxo e uma
frustração: como é possível
que, com uma terra dessas, não
consigamos construir um grande país, uma grande potência,
como fizeram os Estados Unidos? Numa terra radiosa, vive
um povo triste, sentenciou
Paulo Prado em "Retrato do
Brasil". O título do livro de
Zweig transformou-se em ironia: somos, e seremos sempre,
o país do futuro.
Houve de vez em quando em
nossa história surtos de euforia. Para não ir longe, o mais óbvio, ainda vivo na memória de
muitos, foi o dos "anos dourados" de Juscelino Kubitschek
[1956-61].
Combinaram-se vários fatores positivos: a inspiração de
um presidente democrático, altas taxas de crescimento, uma
explosão de criatividade na literatura, no cinema, nas artes
e, principalmente, uma taça
Jules Rimet.
O que poderia ter sido o surto
seguinte, nos anos 1970, com o
alto crescimento, sonhos de
Brasil grande potência e mais
uma Copa do Mundo, foi abortado pela falta de liberdade. A
seguir vieram longos anos de
pessimismo, de vira-latismo.
Sem milagres
Desde o Plano Real vêm sendo construídas as condições
para um novo surto.
Trabalho e sorte acabaram
por fazer ressurgirem os ingredientes clássicos: uma liderança presidencial inspiradora,
uma economia em ordem, embora não tão dinâmica, um presente da natureza no pré-sal,
uma Copa do Mundo em 2014,
Jogos Olímpicos em 2016.
Novos sonhos de Brasil grande, já adormecidos, renasceram na política externa. As
condições internas e externas
parecem mais favoráveis do
que nunca para a decolagem.
Há, no entanto, um grande
inimigo da vitória sobre o vira-latismo: a invasão do oba-obismo. Nada está garantido. O
crescimento econômico pode
não deslanchar, a Copa e a
Olimpíada podem fracassar, a
abundância de petróleo pode
transformar-se em maldição.
Apesar de todas as grandes
melhoras recentes, o país continua sendo campeão de desigualdades, apresenta níveis
vergonhosos de escolaridade,
instituições pouco confiáveis,
cidades dominadas pela violência, depredação da fantástica
natureza.
Êxito mais duradouro desta
vez dependerá de trabalho duro em todas as frentes reconhecidamente indispensáveis para
a decolagem. Dependerá da ausência de oba-oba. Não haverá
milagres. Nem pessimismo
nem euforia levam a lugar nenhum.
Melhor dito, levam apenas ao
país do futuro. Não era certamente isso que Stefan Zweig
pressagiava para nós.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO é historiador,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "A Construção da Ordem/Teatro de Sombras" (Civilização Brasileira).
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