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+(a)utores
Identidades complexas
Parece
não haver
outra
alternativa
para judeus
e palestinos
a não ser
a convivência
pacífica no
Oriente Médio
A criação do Estado de Israel mudou sensivelmente
o quadro
da identidade judaica
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Vivemos num mundo em que o tema
das identidades
abrange um vastíssimo leque. Há
identidades nacionais, étnicas,
raciais, de gênero, de pertencimento a uma comunidade religiosa, a um grupo gay, a uma
torcida de futebol e por aí vai.
Fico no plano das identidades em sentido amplo, exemplificando com o caso do Brasil.
A consciência de ser brasileiro não brota espontaneamente,
mas se origina de uma construção ideológica cujo ponto de
partida foi a formação do Estado nacional.
Somos brasileiros porque fazemos parte de uma nação independente, que vai do Oiapoque ao Chuí, como se dizia nos
velhos manuais de geografia;
porque falamos uma mesma
língua, apenas com sotaques
regionais; porque nos reconhecemos em símbolos como o hino e a bandeira; porque somos
uma imensa torcida nos jogos
da Copa do Mundo -o momento em que "a pátria veste
chuteiras", na expressão feliz e
muito conhecida de Nelson Rodrigues.
Mas há identidades coletivas
mais complexas, como é o caso
dos judeus. Para começar, como se explica a sobrevivência
desse povo durante mais de
dois mil anos, tendo em vista as
circunstâncias de sua história?
Afinal de contas, o território
judaico foi perdido com a ocupação da Judeia pelos romanos, em 63 a.C., e só reapareceu
sob a forma de um Estado nacional em 1948, com a fundação do Estado de Israel.
Língua unificada
Também, o povo judeu não
tem características raciais comuns, bastando comparar as
populações ashkenazis da Europa Central e os sefarditas do
Oriente Médio e do norte da
África.
Mais ainda, inexistiu entre os
judeus uma língua comum, exceto o hebraico -a língua das
celebrações religiosas, suplantada na vida cotidiana pelo iídiche, uma mistura predominante do alemão e de línguas da Europa Central, e pelo ladino, "a
língua florida" dos judeus expulsos da Espanha pelos reis
católicos, em fins do século 15,
misto de espanhol arcaico com
acentos locais.
Aliás, a importância da língua
unificada, na constituição do
Estado nacional, se revela no
fato de que os fundadores de Israel tiveram dúvidas acerca de
qual seria a língua nacional, até
que o hebraico da tradição sagrada superou a opção pelo iídiche, hoje em franco declínio.
Diante desse quadro, que elementos contribuíram para a
preservação de uma identidade
judaica? Quase não seria preciso dizer que a religião -e aí o
hebraico teve papel muito importante- foi um fator de grande relevo.
Convém lembrar que não se
tratava, como não se trata, de
uma religião de textos uniformemente interpretados por
um centro hierárquico superior. Assim, o estudo do "Talmud" -principal obra de referência do judaísmo rabínico-
deu origem a tradições diferentes entre os ashkenazis e os sefarditas.
As interpretações religiosas
estimularam também alguns
aspectos da identificação judaica: a crença no Deus único, a
negação do Cristo como o esperado Messias, a noção de povo
eleito, hoje injustificável.
Por sua vez, as perseguições
tiveram consequências contraditórias. As hostes do povo judeu foram desfalcadas pelas
conversões de conveniência ou
pelas conversões forçadas, como foi o caso dos cristãos-novos da península Ibérica.
Porém, ao mesmo tempo, deram origem ao desenvolvimento de sensibilidades e ações ambivalentes. Temor, pânico, sentimento de ser o "outro" amaldiçoado, responsável pela morte de Cristo, mas também reforço da identidade, determinação em mantê-la.
Nos tempos atuais, a criação
do Estado de Israel mudou sensivelmente o quadro da identidade judaica -ou melhor, das
identidades judaicas- ao dar
origem a pelo menos duas personalidades coletivas distintas:
o judeu de Israel e o judeu da
diáspora.
Se o judeu de Israel é cidadão
de um país, embora essa cidadania passe pelo prisma não só
do Estado como do rabinato ortodoxo, o da diáspora é cidadão
de outro país, com potencialidade de ser também cidadão de
Israel.
Ceticismo cauteloso
Um livro recente traz uma
importante reflexão sobre o tema do judaísmo. Intitula-se
"Judaísmo para Todos" (ed. argentina Siglo XXI), escrito pelo
sociólogo Bernardo Sorj, nascido no Uruguai, e há muitos
anos enraizado no Brasil.
Sorj enfrenta corajosamente
questões como a do antissemitismo e a da negação do Holocausto, incorporadas por algumas figuras repugnantes da cena mundial; enfatiza a importância de preservar a memória
do massacre, sem embargo da
crítica à sua instrumentação
política; defende a necessidade
de uma renovação humanista e
secular do judaísmo.
Lembro ainda, e destaco, sua
tese de que a fragmentação do
judaísmo, entre várias correntes, nos dias que correm, é um
sinal de pujança criativa, e não
de certezas confortadoras.
Esses tópicos têm incidência
nas tentativas de romper o quadro de estagnação das iniciativas de paz entre israelenses e
palestinos, ao incentivarem o
reconhecimento do "outro",
palestino ou judeu.
É um passo vital, empreendido na prática, por pequenas organizações. Ele se situa na base
de questões como a do reconhecimento de um verdadeiro
Estado palestino, com a desocupação dos territórios ocupados, e a do combate ao terrorismo, assim como a do enfrentamento daqueles que negam a
existência de Israel.
Anos e anos de efêmeras
aproximações e impasses duradouros justificam um cauteloso
ceticismo.
Mas, se o caminho não for esse, a alternativa será a de hoje: a
confrontação e a violência recíprocas. É o que desejam os fanáticos de ambos os lados, mas
não quem busca a convivência
de dois povos, com dignidade e
sem humilhações.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
borisfausto@uol.com.br
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