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O labirinto e a metáfora
MANUEL VÁZQUEZ MONTALBÁN
especial para "El País"
Afinal, o Nobel premia um escritor de língua portuguesa. Um escritor difícil, avesso ao literariamente correto e que agora, mais
do que nunca, necessita de apresentação para escapar do imaginário feito de estereótipos, para safar-se dos clichês que o enquadram. O imaginário Saramago reproduz um escritor tardio, como
Buffalino ou Camileri, jornalista e
comunista, nascido à sombra da
estética de Pessoa em "O Ano da
Morte de Ricardo Reis"; construtor de impossíveis utopias irônicas
em "A Jangada de Pedra", interpretada como uma parábola antieuropeísta; exemplo de escritor
engajado, comprometido com a
literatura e com a ideologia, mas
dono de uma verdade literária que
não depende da ideológica.
"Ensaio Sobre a Cegueira" introduz o Saramago atual, que
aponta para um discurso em que
Vida, História e Morte resultam
em paciência expositiva, como se
o escritor se concedesse um tempo
sem limites para a exposição literária, em contradição com os limites biológicos e históricos. Pode-se
dizer, até, que esse Saramago tende a se afastar do otimismo, da esperança leiga na história, mas procurando não se render à tendência
para o pessimismo biológico.
"Todos os Nomes" parece-me
uma das obras mais reveladoras
da relação entre ética e estética no
Saramago de hoje.
O protagonista busca e rebusca
na trama da geometria do Arquivo
da Conservadoria Geral do Registro Civil, local concebido como
um universo de arquivos ou como
o universo arquivado, como materialização da relação entre espaço e tempo, ambos embalsamados. Se para Borges o Universo era
ou merecia ser uma Biblioteca, Saramago propõe que ele seja a Conservadoria Geral do Registro Civil.
Nesse cenário há dois sujeitos
dominantes: o chefe e o sr. José.
Este é o que podemos chamar
"probo funcionário", da estipe
dos funcionários oitocentistas,
embebido da náusea do autodidata e da indeterminação de Joseph
K. Saramago recria-se e recreia-se
na reconstrução de um romance
de escriturários com atmosfera oitocentista, como que buscando
uma cenografia falsamente naturalista, uma cenografia enterrada,
sepultada, pré-kafkiana, um dos
maiores achados do livro. Se no
romance ensimesmado dos anos
60 e 70 os protagonistas levavam
30 páginas para subir uma escada
e 40 para abrir uma janela, em
"Todos os Nomes", o sr. José demora 40 para abrir uma pasta, instalado na íntima satisfação de proprietário da memória da vida de
todos em seus dados mais óbvios.
O leitor vê-se submetido à intriga da revelação esperada e assume
sua aproximação, até que vem à
luz a notícia de uma mulher que
levará o sr. José e o leitor fora do
Arquivo, talvez na esperança de
sair do labirinto. Aqui é preciso
dizer que, enquanto a metáfora do
mundo é a Conservadoria, o labirinto é a da vida. Essa mulher, que
chama o sr. José da substância
mesma de um papel mofado, talvez seja Ariadne oferecendo-lhe o
fio redentor. O labirinto interior é
separado do exterior pela pele,
mas Valéry escreveu que nada no
homem é mais profundo que a pele. O sr. José, o próprio Saramago,
pensa que não tomamos decisões,
mas que as decisões é que nos tomam. Temos aqui a primeira presença de Beckett: "Isto não é mover-se, isto é ser movido".
Em seu percurso pela construção de uma mulher real, o sr. José
acaba por desconstruí-la, pois a
indagação o conduz à morte dentro dos dois hemisférios em que a
Conservadoria se divide: o dos
mortos e o dos vivos. O chefe,
ciente de todas as pequenas, angustiosas transgressões que o sr.
José teve de perpetrar para transpor a sutil divisória que separa a
vida da morte, propõe que este
contemple os dois hemisférios como um só. Em uma patética cena
quase final, a investigação leva o
protagonista a ouvir a voz da mulher procurada em uma gravação
de secretária eletrônica. Este confessa ficar sem pensamentos, enquanto a voz da fita evoca Beckett
pela segunda vez, em uma referência a "Knapp's Last Tape". A vida
está gravada, apenas gravada, e só
faz sentido em torno dessa voz.
Romance de intriga morosa, ao
passo lento de um funcionário.
Romance de amor, literatura
-toda a de Saramago- de amor,
acima do sensorial e dos corpos
concretos: tentativa de construir
um mito emocional com a vagareza de um burocrata incapaz de assumir que angústia é o nome de
sua angústia. Ou o leitor assume
esse tempo moroso, a identificação da relação entre tempo e espaço embalsamados, ou não adentrará o labirinto e sua metáfora.
Acabam de dar o Nobel de Literatura a um grande escritor e a
uma grande literatura que o mereciam. Porque a notícia não é só a
premiação de Saramago, e sim a
escolha de um escritor de língua
portuguesa.
JESUS ENCONTRA DEUS E O DIABO
"Este é o Diabo, de quem falávamos há pouco.
Jesus olhou para um, olhou para o outro, e viu que,
tirando as barbas de Deus, eram como gêmeos, é
certo que o Diabo parecia mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele induzido. Disse Jesus, Sei quem é, vivi
quatro anos na sua companhia, quando se chamava Pastor, e Deus respondeu, Tinhas de viver com
alguém, comigo não era possível, com a tua família
não querias, só restava o Diabo, Foi ele que me foi
buscar, ou tu que me enviaste a ele, Em rigor, nem
uma coisa nem outra, digamos que estivemos de
acordo em que essa era a melhor solução para o
seu caso, Por isso ele sabia o que dizia quando,
pela boca do possesso gadareno, me chamou teu
filho, Tal qual, Quer dizer, fui enganado por ambos, Como sempre sucede aos homens, Tinhas dito
que não sou um homem, E confirmo-lo, poderemos
é dizer que, qual é a palavra técnica, podemos dizer que encarnaste, E agora, que quereis de mim,
Quem quer sou eu, não ele, Estais aqui os dois, bem
vi que o aparecimento dele não foi surpresa para ti,
portanto esperava-lo, Não precisamente, embora,
por princípio, se deva contar sempre com o Diabo(...)"
Trecho extraído de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Manuel Vásquez Montalbán é escritor espanhol, autor de "Os Mares do Sul" e "Autobiografia do General Franco".
Tradução de Sérgio Molina.
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