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PONTO DE FUGA
A dramaturgia da imagem
JORGE COLI
especial para a Folha
Brian de Palma sempre fez cinema com cinema. "Festim
Diabólico", "O Homem Que Sabia Demais", "Os Mil Olhos do
Dr. Mabuse", e mais o que se
quiser, estão em "Snake Eyes".
Não são citações ou homenagens: trata-se de fechar o cinema sobre si mesmo e não pactuar com a crença comum numa realidade direta e estável. A
"realidade", aqui, é a multiplicação indefinida da natureza
do olhar: olhar das várias câmeras de vídeo; olhar voyeur
sobre as telas de controle; olhar
fixo ou em movimento; olhar
embaçado de míope sem óculos; olhar agudo de policial experiente; olhar condicionado
para ver o que não é; olhar "em
situação", que revela a "verdade", sem que palavra seja dita.
Olhar do espectador, vestindo
cada um desses modos de ver.
Olhar da serpente que, na gíria
norte-americana dos cassinos,
significa as duas pupilas formadas no jogo de dados, quando um único ponto em cada face do cubo indica a vitória da
mesa. Metáfora possível do diretor manipulando todos os
lances, virtuose fabricante de
imagens, incorporando os
olhares de cineastas que o precederam. O que pode ser a "essência" do real, para um de
Palma cientista, que, antes de
fazer cinema, ganhou prêmio
com uma tese no campo da cibernética? Anunciando "Snake
Eyes", essências e artifícios já
concorriam em filmes como
"Blow Out" ou "Phantom of the
Paradise", em que sons e imagens são traços "reais" de um
vazio ou de uma ausência.
RATOEIRAS - Na massa de
filmes trazida pelos festivais do
Rio e de São Paulo, vem "Sitcom" ("Nossa Linda Família").
Primeiro longa-metragem de
François Ozon, foi objeto de
uma certa expectativa na
França e depois desancado pela crítica de lá, assustada por
uma "vulgaridade" que mistura humor e sexo. A comédia,
porém, é perturbadora. Ozon
não destrói a família, mas procede a uma reforma onde os laços se fazem doentios em aparência para se tornarem saudavelmente prazerosos. "Carne
Trêmula", de Almodóvar, é outro filme que veio nos festivais e
onde emerge também a força
doentia dos afetos. Mas Almodóvar explora, com novas
nuances, seu antigo fascínio
pelo melodrama, no qual os
predestinados acabam redimidos pelo grande amor. Talvez
seja seu mais perfeito filme,
equilibrado entre força narrativa, humor discreto e delicadeza.
ANTECIPAÇÃO - Com as
tecnologias avançadas, "Snake
Eyes" torna muito complexa a
substituição do mundo pelas
imagens do mundo. No entanto, um romance poético de Jules Verne, "O Castelo dos Cárpatos", prefigurou, há cem
anos, obsessões parecidas com
as de Brian de Palma sobre a
natureza do som gravado e da
imagem em movimento.
PRAIA DOS MORTOS - No
último domingo, o Mais! publicou um dossiê muito estimulante sobre "O Resgate do Soldado Ryan", de Spielberg. Dentre os artigos, há uma condenação de Louis Menand, fundada
na idéia que o filme impede de
pensar, escolhendo os caminhos do sentimento. Esta é, porém, a grande qualidade de
"Ryan". Numa guerra, o general "pensa" sua estratégia e decide, com frieza, que regimento
deverá sacrificar, calculando
quantos homens morrerão.
Spielberg instaura a carnificina: ele nos põe junto aos soldados e elimina, pelo caos hediondo, o pensamento abstrato.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20hotmail.com
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