São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

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PONTO DE FUGA

A dramaturgia da imagem

JORGE COLI
especial para a Folha

Brian de Palma sempre fez cinema com cinema. "Festim Diabólico", "O Homem Que Sabia Demais", "Os Mil Olhos do Dr. Mabuse", e mais o que se quiser, estão em "Snake Eyes". Não são citações ou homenagens: trata-se de fechar o cinema sobre si mesmo e não pactuar com a crença comum numa realidade direta e estável. A "realidade", aqui, é a multiplicação indefinida da natureza do olhar: olhar das várias câmeras de vídeo; olhar voyeur sobre as telas de controle; olhar fixo ou em movimento; olhar embaçado de míope sem óculos; olhar agudo de policial experiente; olhar condicionado para ver o que não é; olhar "em situação", que revela a "verdade", sem que palavra seja dita. Olhar do espectador, vestindo cada um desses modos de ver. Olhar da serpente que, na gíria norte-americana dos cassinos, significa as duas pupilas formadas no jogo de dados, quando um único ponto em cada face do cubo indica a vitória da mesa. Metáfora possível do diretor manipulando todos os lances, virtuose fabricante de imagens, incorporando os olhares de cineastas que o precederam. O que pode ser a "essência" do real, para um de Palma cientista, que, antes de fazer cinema, ganhou prêmio com uma tese no campo da cibernética? Anunciando "Snake Eyes", essências e artifícios já concorriam em filmes como "Blow Out" ou "Phantom of the Paradise", em que sons e imagens são traços "reais" de um vazio ou de uma ausência.

RATOEIRAS - Na massa de filmes trazida pelos festivais do Rio e de São Paulo, vem "Sitcom" ("Nossa Linda Família"). Primeiro longa-metragem de François Ozon, foi objeto de uma certa expectativa na França e depois desancado pela crítica de lá, assustada por uma "vulgaridade" que mistura humor e sexo. A comédia, porém, é perturbadora. Ozon não destrói a família, mas procede a uma reforma onde os laços se fazem doentios em aparência para se tornarem saudavelmente prazerosos. "Carne Trêmula", de Almodóvar, é outro filme que veio nos festivais e onde emerge também a força doentia dos afetos. Mas Almodóvar explora, com novas nuances, seu antigo fascínio pelo melodrama, no qual os predestinados acabam redimidos pelo grande amor. Talvez seja seu mais perfeito filme, equilibrado entre força narrativa, humor discreto e delicadeza.

ANTECIPAÇÃO - Com as tecnologias avançadas, "Snake Eyes" torna muito complexa a substituição do mundo pelas imagens do mundo. No entanto, um romance poético de Jules Verne, "O Castelo dos Cárpatos", prefigurou, há cem anos, obsessões parecidas com as de Brian de Palma sobre a natureza do som gravado e da imagem em movimento.

PRAIA DOS MORTOS - No último domingo, o Mais! publicou um dossiê muito estimulante sobre "O Resgate do Soldado Ryan", de Spielberg. Dentre os artigos, há uma condenação de Louis Menand, fundada na idéia que o filme impede de pensar, escolhendo os caminhos do sentimento. Esta é, porém, a grande qualidade de "Ryan". Numa guerra, o general "pensa" sua estratégia e decide, com frieza, que regimento deverá sacrificar, calculando quantos homens morrerão. Spielberg instaura a carnificina: ele nos põe junto aos soldados e elimina, pelo caos hediondo, o pensamento abstrato.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20hotmail.com



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