São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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+ memória

Mário Pedrosa e o olhar dos espiões

Mário Magalhães
da Sucursal do Rio

Quando o militante socialista e crítico de arte Mário Pedrosa morreu, no dia 5 de novembro de 1981, seus amigos esboçaram um perfil biográfico que o consagrava como um dos mais brilhantes intelectuais da história do Brasil.
"[Foi] uma das inteligências mais ricas e criativas que nosso país teve", escreveu o então correspondente da Folha em Londres, Cláudio Abramo. O teatrólogo Flávio Rangel, à época colunista do jornal, testemunhou: "Seu pensamento era sempre original e profundo. Assistir a Mário desenvolvendo suas idéias, num debate ou numa discussão, era um prazer permanente, uma espécie de síntese entre filosofia e estética".
Em abril passado, foi lançado o livro-homenagem "Mário Pedrosa e o Brasil" (editora Perseu Abramo, organização de José Castilho Marques Neto).
No volume, depoimentos da atriz Lélia Abramo, do crítico literário Antonio Candido, do petista Luiz Inácio Lula da Silva, do sociólogo Luciano Martins e da professora de estética da USP Otília Arantes reforçam, com cores fortes, o retrato desenhado décadas antes.
Agora, no mês em que a morte de Mário Pedrosa completa 20 anos, uma investigação da Folha no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro revela uma coincidência: para os agentes secretos que o espionaram da década de 1930 à de 1980, Pedrosa, um dos pregadores originais do socialismo democrático no Brasil, filiado número 1 do PT, primeiro crítico a reconhecer a condição de arte nas pinturas dos pacientes da psiquiatra Nise da Silveira e amigo do revolucionário Leon Trótski, do surrealista Benjamin Péret e do presidente Salvador Allende, não fugia muito à imagem de brilhantismo construída por seus companheiros.
"Muito inteligente, falando diversos idiomas, ativo e desembaraçado, age de preferência no meio inculto, onde sua ação corruptosa [sic" é rápida e proveitosa." Assim o descreveu em relatório um agente secreto da Polícia Civil do Distrito Federal, caracterizando-o como "elemento perigosíssimo à ordem e à segurança públicas". Corria o ano de 1938, o seguinte à instauração da ditadura do Estado Novo (1937-45), na primeira passagem (1930-45) de Getúlio Vargas pela Presidência da República.
Numa resposta ao Consulado Geral dos Estados Unidos, que buscava a ficha de Pedrosa, a polícia política federal alertou: "[É um" agitador inteligente".
No dia 3 de fevereiro de 1941, um espião identificado como D-15 assinou um relatório combinando elogio à inteligência de Pedrosa e desdém por sua saúde. Citava-o como fundador de duas organizações políticas, a Liga Trotskista -na verdade Liga Comunista Internacionalista- e o Partido Operário Leninista.
Descrevia-o: "Rapaz de seus 35 anos, alto e de tez doentia. Já esteve tuberculoso e tem pulmões fracos. Escritor de grande capacidade intelectual e um dos maiores conhecedores do marxismo na América do Sul (...). Segundo consta, está presentemente no Rio de Janeiro. Sou amigo de Mário Pedrosa e espero encontrar-me com ele muito brevemente".
Ou seja: Pedrosa tinha, sem saber, em suas relações um agente inimigo que o monitorava para o Estado. Sobre a saúde, a impressão parece contraditória com os fatos. O militante tinha 40 anos de idade -e aparentava 35. E só viria a morrer octogenário.
Em outro regime de força, o dos militares (1964-1985), a espionagem prosseguiu. Um informe do CIE (Centro de Informações do Exército) do 1º Exército sintetizou em 8 de julho de 1970 um Inquérito Policial Militar no qual Pedrosa e outros intelectuais e ativistas foram condenados por divulgar no exterior, nas palavras do agente militar, "eventuais torturas e violência a presos políticos brasileiros".
O relatório do órgão de inteligência do Exército afirma: ""O epigrafado [Pedrosa" influiu na ação do grupo devido à sua ascendência moral sobre os mais jovens, pois impunha-se pelo seu conhecimento, idade e respeito ao "velho mestre".
Vinte dias depois, foi decretada a prisão preventiva de Mário Pedrosa, que se asilou na embaixada do Chile. Após dois meses, ele partiu para o exílio no país andino, onde também foi observado por arapongas brasileiros.
Além do tom temeroso e ironicamente um tanto venerando das 192 páginas encontradas nos fundos documentais políticos do Arquivo Público do Rio, a maioria com carimbos de "confidencial" ou "secreto", dois aspectos se destacam no dossiê. Um é a longevidade do olhar do aparato de segurança sobre Mário Pedrosa, expressão da trajetória política de quem, aos 78 anos (nasceu em abril de 1900), escreveu para o ascendente líder sindical Lula, numa carta em que se referia a Karl Marx como "meu mestre": "Nessa idade (...) não se é mais candidato a nada, a não ser a continuar fiel às idéias da mocidade".
O outro é, num aparente paradoxo com a espionagem ininterrupta dos órgãos oficiais, a impressão de que os informes não dão conta da relevância histórica de Pedrosa, goste-se ou não dele.
A explicação provável é a obsessão da arapongagem com a vigilância dos movimentos armados contra o Estado. Opositor de Getúlio Vargas e dos militares, Pedrosa não participou, considerando-as ações destinadas ao fracasso, da chamada Intentona Comunista de 1935 e da guerrilha dos anos 60 e 70.
Mário Pedrosa aderiu ao Partido Comunista em meados dos anos 20. Em 1928, rompeu com o stalinismo e se tornou o precursor da oposição de esquerda, liderada por Trótski, no Brasil.
Na década de 30, principiou o estudo sistemático da arte. No futuro, na opinião de muitos pesquisadores, se tornaria o maior crítico brasileiro, com larga projeção internacional.
Na virada para os anos 40, irritado com o pacto Hitler-Stálin, se opôs à "defesa incondicional da União Soviética" apregoada por Trótski e abandonou o grupo trotskista, cuja direção mundial integrava. Ao morrer, mantinha sobre a mesa de trabalho um porta-retratos com a imagem do revolucionário russo.
No arquivo do Rio estão registradas as suas prisões de 1938 e 1941, inclusive com as fotos de frente e perfil e as digitais impressas, além da decretação de prisão preventiva não consumada de 1970.
Em 1966, o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) infiltrou um agente numa célebre assembléia de intelectuais oposicionistas em Ipanema, com a presença de Mário Pedrosa, Janio de Freitas, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Flávio Rangel, Tonia Carrero, Paulo Francis e o advogado José Gregori, atual ministro da Justiça.
A temporada de três anos de Pedrosa no Chile, de onde ele escapou após o golpe de setembro de 1973, é reconstituída em fragmentos por interrogatórios de dois militantes feitos pelo DOI (Destacamento de Operações de Informações) do 1º Exército. Um dos detidos havia se hospedado em Santiago na casa de Pedrosa, que se dedicou a amparar conterrâneos exilados e a organizar o Museu da Solidariedade para o presidente socialista Salvador Allende.
Na inauguração do museu, em 1972, com obras de Joan Miró, Lygia Clark, Frans Krajcberg e artistas de todo o mundo, Allende citou cinco vezes o amigo brasileiro em seu discurso.
Em 1977, quando voltou, doente, do exílio na França, Pedrosa foi interrogado pela Polícia Federal. Seu depoimento ficou registrado em três páginas.
Num dos últimos informes em que é citado, foi visto por um espião do Exército em outubro de 1979, em Madureira, subúrbio carioca, numa reunião de lançamento do PT. Lula e o psicanalista Hélio Pellegrino, levado pelo amigo Mário Pedrosa para o novo partido, estavam lá.
Um século após o nascimento e duas décadas depois da morte de Pedrosa, sua história na política e nas artes vem sendo recuperada em reedições de seus escritos e estudos acadêmicos. Inexiste, contudo, uma biografia à altura de quem, em sua elegia, Cláudio Abramo chamou de "príncipe do espírito".


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