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+ memória
Mário Pedrosa e o olhar dos espiões
Mário Magalhães
da Sucursal do Rio
Quando o militante socialista e
crítico de arte Mário Pedrosa
morreu, no dia 5 de novembro
de 1981, seus amigos esboçaram um perfil biográfico que o consagrava como um dos mais brilhantes intelectuais da história do Brasil.
"[Foi] uma das inteligências mais ricas
e criativas que nosso país teve", escreveu
o então correspondente da Folha em
Londres, Cláudio Abramo. O teatrólogo
Flávio Rangel, à época colunista do jornal, testemunhou: "Seu pensamento era
sempre original e profundo. Assistir a
Mário desenvolvendo suas idéias, num
debate ou numa discussão, era um prazer permanente, uma espécie de síntese
entre filosofia e estética".
Em abril passado, foi lançado o livro-homenagem "Mário Pedrosa e o Brasil"
(editora Perseu Abramo, organização de
José Castilho Marques Neto).
No volume, depoimentos da atriz Lélia
Abramo, do crítico literário Antonio
Candido, do petista Luiz Inácio Lula da
Silva, do sociólogo Luciano Martins e da
professora de estética da USP Otília
Arantes reforçam, com cores fortes, o retrato desenhado décadas antes.
Agora, no mês em que a morte de Mário Pedrosa completa 20 anos, uma investigação da Folha no Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro revela uma
coincidência: para os agentes secretos
que o espionaram da década de 1930 à de
1980, Pedrosa, um dos pregadores originais do socialismo democrático no Brasil, filiado número 1 do PT, primeiro crítico a reconhecer a condição de arte nas
pinturas dos pacientes da psiquiatra Nise
da Silveira e amigo do revolucionário
Leon Trótski, do surrealista Benjamin
Péret e do presidente Salvador Allende,
não fugia muito à imagem de brilhantismo construída por seus companheiros.
"Muito inteligente, falando diversos
idiomas, ativo e desembaraçado, age de
preferência no meio inculto, onde sua
ação corruptosa [sic" é rápida e proveitosa." Assim o descreveu em relatório um
agente secreto da Polícia Civil do Distrito
Federal, caracterizando-o como "elemento perigosíssimo à ordem e à segurança públicas". Corria o ano de 1938, o
seguinte à instauração da ditadura do Estado Novo (1937-45), na primeira passagem (1930-45) de Getúlio Vargas pela
Presidência da República.
Numa resposta ao Consulado Geral
dos Estados Unidos, que buscava a ficha
de Pedrosa, a polícia política federal alertou: "[É um" agitador inteligente".
No dia 3 de fevereiro de 1941, um espião identificado como D-15 assinou um
relatório combinando elogio à inteligência de Pedrosa e desdém por sua saúde.
Citava-o como fundador de duas organizações políticas, a Liga Trotskista -na
verdade Liga Comunista Internacionalista- e o Partido Operário Leninista.
Descrevia-o: "Rapaz de seus 35 anos,
alto e de tez doentia. Já esteve tuberculoso e tem pulmões fracos. Escritor de
grande capacidade intelectual e um dos
maiores conhecedores do marxismo na
América do Sul (...). Segundo consta, está
presentemente no Rio de Janeiro. Sou
amigo de Mário Pedrosa e espero encontrar-me com ele muito brevemente".
Ou seja: Pedrosa tinha, sem saber, em
suas relações um agente inimigo que o
monitorava para o Estado. Sobre a saúde, a impressão parece contraditória
com os fatos. O militante tinha 40 anos
de idade -e aparentava 35. E só viria a
morrer octogenário.
Em outro regime de força, o dos militares (1964-1985), a espionagem prosseguiu. Um informe do CIE (Centro de Informações do Exército) do 1º Exército
sintetizou em 8 de julho de 1970 um Inquérito Policial Militar no qual Pedrosa e
outros intelectuais e ativistas foram condenados por divulgar no exterior, nas
palavras do agente militar, "eventuais
torturas e violência a presos políticos
brasileiros".
O relatório do órgão de inteligência do
Exército afirma: ""O epigrafado [Pedrosa" influiu na ação do grupo devido à sua
ascendência moral sobre os mais jovens,
pois impunha-se pelo seu conhecimento, idade e respeito ao "velho mestre".
Vinte dias depois, foi decretada a prisão
preventiva de Mário Pedrosa, que se asilou na embaixada do Chile. Após dois
meses, ele partiu para o exílio no país andino, onde também foi observado por
arapongas brasileiros.
Além do tom temeroso e ironicamente
um tanto venerando das 192 páginas encontradas nos fundos documentais políticos do Arquivo Público do Rio, a maioria com carimbos de "confidencial" ou
"secreto", dois aspectos se destacam no
dossiê. Um é a longevidade do olhar do
aparato de segurança sobre Mário Pedrosa, expressão da trajetória política de
quem, aos 78 anos (nasceu em abril de
1900), escreveu para o ascendente líder
sindical Lula, numa carta em que se referia a Karl Marx como "meu mestre":
"Nessa idade (...) não se é mais candidato
a nada, a não ser a continuar fiel às idéias
da mocidade".
O outro é, num aparente paradoxo
com a espionagem ininterrupta dos órgãos oficiais, a impressão de que os informes não dão conta da relevância histórica de Pedrosa, goste-se ou não dele.
A explicação provável é a obsessão da
arapongagem com a vigilância dos movimentos armados contra o Estado.
Opositor de Getúlio Vargas e dos militares, Pedrosa não participou, considerando-as ações destinadas ao fracasso, da
chamada Intentona Comunista de 1935 e
da guerrilha dos anos 60 e 70.
Mário Pedrosa aderiu ao Partido Comunista em meados dos anos 20. Em
1928, rompeu com o stalinismo e se tornou o precursor da oposição de esquerda, liderada por Trótski, no Brasil.
Na década de 30, principiou o estudo
sistemático da arte. No futuro, na opinião de muitos pesquisadores, se tornaria o maior crítico brasileiro, com larga
projeção internacional.
Na virada para os anos 40, irritado com
o pacto Hitler-Stálin, se opôs à "defesa
incondicional da União Soviética" apregoada por Trótski e abandonou o grupo
trotskista, cuja direção mundial integrava. Ao morrer, mantinha sobre a mesa de
trabalho um porta-retratos com a imagem do revolucionário russo.
No arquivo do Rio estão registradas as
suas prisões de 1938 e 1941, inclusive com
as fotos de frente e perfil e as digitais impressas, além da decretação de prisão
preventiva não consumada de 1970.
Em 1966, o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) infiltrou um agente
numa célebre assembléia de intelectuais
oposicionistas em Ipanema, com a presença de Mário Pedrosa, Janio de Freitas,
Carlos Heitor Cony, Antonio Callado,
Flávio Rangel, Tonia Carrero, Paulo
Francis e o advogado José Gregori, atual
ministro da Justiça.
A temporada de três anos de Pedrosa
no Chile, de onde ele escapou após o golpe de setembro de 1973, é reconstituída
em fragmentos por interrogatórios de
dois militantes feitos pelo DOI (Destacamento de Operações de Informações) do
1º Exército. Um dos detidos havia se hospedado em Santiago na casa de Pedrosa,
que se dedicou a amparar conterrâneos
exilados e a organizar o Museu da Solidariedade para o presidente socialista Salvador Allende.
Na inauguração do museu, em 1972,
com obras de Joan Miró, Lygia Clark,
Frans Krajcberg e artistas de todo o
mundo, Allende citou cinco vezes o amigo brasileiro em seu discurso.
Em 1977, quando voltou, doente, do
exílio na França, Pedrosa foi interrogado
pela Polícia Federal. Seu depoimento ficou registrado em três páginas.
Num dos últimos informes em que é
citado, foi visto por um espião do Exército em outubro de 1979, em Madureira,
subúrbio carioca, numa reunião de lançamento do PT. Lula e o psicanalista Hélio Pellegrino, levado pelo amigo Mário
Pedrosa para o novo partido, estavam lá.
Um século após o nascimento e duas
décadas depois da morte de Pedrosa, sua
história na política e nas artes vem sendo
recuperada em reedições de seus escritos
e estudos acadêmicos. Inexiste, contudo,
uma biografia à altura de quem, em sua
elegia, Cláudio Abramo chamou de
"príncipe do espírito".
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