São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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Ponto de fuga

Serviço de quarto

"1.408" tem pouco em comum com o cinema de terror atual: é discreto, imaginativo, evita o sangue, o susto; sugere a elegância de filmes antigos; lembra "Além da Imaginação"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Hotéis são lugares naturalmente arrepiantes... Pense só: quantas pessoas dormiram nessa cama antes de você? Quantas... morreram?" Essa fala está no filme "1.408". Um quarto de hotel pode ser luxuoso: naquele colchão preparado para o hóspede dormiram centenas, milhares de pessoas. Deixaram ali suores e fluidos corporais de toda espécie.
Jazem ali, nem que seja pela repugnância mental de cada hóspede ou, pelo menos, de certos hóspedes. Há também a pregnância das almas, as secreções espirituais. Travesseiros, objetos, móveis, num hotel, existem para servir e são órfãos de amor. Não têm dono, por assim dizer.
Numa casa, ao contrário, coisas são usadas, amadas ou odiadas. Elas se impregnam das vidas que compartilharam. Conservam, absorvidas, emanações rarefeitas de gente que se foi. As casas assombradas formam um tema do romantismo fantástico; o cinema o explorou, provocando arrepios ou fazendo paródia. "Desafio ao Além" [no original, "The Haunting", 1963], de Robert Wise, amado dos cinéfilos, mas menos conhecido do que deveria, é uma grande obra-prima do gênero.
Entre os fantasmas de uma casa e de um hotel há uma diferença importante. Os primeiros são estáveis e mantêm uma relação de propriedade com o edifício. A casa, que é o lugar da segurança, da intimidade, da estabilidade familiar, polariza sua memória em torno de alguns habitantes apenas, cujas existências se entrelaçaram.
Ao contrário, o quarto de hotel recebeu pessoas díspares que lhe revelaram intimidades muitas vezes inconfessáveis: mesmo quando não assombrado, já é inquietante.

Twilight Zone
"1.408" foi dirigido pelo sueco Mikael Hafström, que teve já uma longa carreira em seu país. É o seu segundo filme norte-americano. Críticos evocaram "O Iluminado", de Kubrick, a respeito de "1.408", comparação ao mesmo tempo justa e injusta. Justa porque há em ambos um hotel com seus fantasmas e porque adaptam ficções criadas por Stephen King. Injusta porque um está entre as grandes obras cinematográficas, e o alcance do outro é bem menor.
O estilo de Hafström é pessoal, perturbador pela montagem que alterna tomadas à distância e closes: "1.408" apresenta, sem dúvida, qualidades. Tem pouco em comum com cinema de terror contemporâneo. É discreto, imaginativo, evita o sangue, o susto; sugere a elegância de filmes antigos.
Lembra a mítica série "Além da Imaginação", nos anos 1960: como se fosse feito desses episódios emendados uns nos outros. Stephen King cita "Além da Imaginação" no conto que deu origem ao filme.

Diamante
Um dia há de se fazer justiça a William Friedkin, marcado para sempre pelo sucesso popular de "O Exorcista". É um grande autor, cujo filme "Possuídos" ("Bug"), lançado no Brasil em agosto passado, foi um fracasso de bilheteria no mundo inteiro.
Deriva de uma peça de teatro em que um casal se encontra e se ama. Tremendo amor, agente de contágio para uma loucura destruidora, em que insetos imaginários invadem os corpos. A câmera de Friedkin transfigura as origens teatrais como se captasse o invisível.

Bunker
Em "Possuídos" [DVD Califórnia], o alojamento num desses motéis americanos em que a heroína vive termina revestido de plástico, de papel alumínio, para proteger o casal de sua paranóia. Nada adianta, está claro, porque os vírus estão na alma. Mas a projeção física dessa loucura nos cenários a torna tangível. Casas, quartos, coisas, não fazem mais do que abrigar os fantasmas de cada um.


jorgecoli@uol.com.br


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