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Ponto de fuga
Serviço de quarto
"1.408" tem pouco em comum com o cinema de terror atual: é discreto, imaginativo, evita o sangue, o susto; sugere a elegância de filmes antigos; lembra "Além da Imaginação"
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Hotéis são lugares naturalmente arrepiantes...
Pense só: quantas pessoas dormiram nessa cama antes de você? Quantas... morreram?" Essa fala está no filme
"1.408". Um quarto de hotel
pode ser luxuoso: naquele colchão preparado para o hóspede
dormiram centenas, milhares
de pessoas. Deixaram ali suores e fluidos corporais de toda
espécie.
Jazem ali, nem que seja pela
repugnância mental de cada
hóspede ou, pelo menos, de
certos hóspedes. Há também a
pregnância das almas, as secreções espirituais. Travesseiros,
objetos, móveis, num hotel,
existem para servir e são órfãos
de amor. Não têm dono, por assim dizer.
Numa casa, ao contrário, coisas são usadas, amadas ou odiadas. Elas se impregnam das vidas que compartilharam. Conservam, absorvidas, emanações
rarefeitas de gente que se foi.
As casas assombradas formam
um tema do romantismo fantástico; o cinema o explorou,
provocando arrepios ou fazendo paródia.
"Desafio ao Além" [no original, "The Haunting", 1963], de
Robert Wise, amado dos cinéfilos, mas menos conhecido do
que deveria, é uma grande
obra-prima do gênero.
Entre os fantasmas de uma
casa e de um hotel há uma diferença importante. Os primeiros são estáveis e mantêm uma
relação de propriedade com o
edifício. A casa, que é o lugar da
segurança, da intimidade, da
estabilidade familiar, polariza
sua memória em torno de alguns habitantes apenas, cujas
existências se entrelaçaram.
Ao contrário, o quarto de hotel recebeu pessoas díspares
que lhe revelaram intimidades
muitas vezes inconfessáveis:
mesmo quando não assombrado, já é inquietante.
Twilight Zone
"1.408" foi dirigido pelo sueco Mikael Hafström, que teve já
uma longa carreira em seu país.
É o seu segundo filme norte-americano.
Críticos evocaram "O Iluminado", de Kubrick, a respeito de
"1.408", comparação ao mesmo
tempo justa e injusta. Justa
porque há em ambos um hotel
com seus fantasmas e porque
adaptam ficções criadas por
Stephen King. Injusta porque
um está entre as grandes obras
cinematográficas, e o alcance
do outro é bem menor.
O estilo de Hafström é pessoal, perturbador pela montagem que alterna tomadas à distância e closes: "1.408" apresenta, sem dúvida, qualidades.
Tem pouco em comum com cinema de terror contemporâneo. É discreto, imaginativo,
evita o sangue, o susto; sugere a
elegância de filmes antigos.
Lembra a mítica série "Além
da Imaginação", nos anos 1960:
como se fosse feito desses episódios emendados uns nos outros. Stephen King cita "Além
da Imaginação" no conto que
deu origem ao filme.
Diamante
Um dia há de se fazer justiça a
William Friedkin, marcado para sempre pelo sucesso popular
de "O Exorcista". É um grande
autor, cujo filme "Possuídos"
("Bug"), lançado no Brasil em
agosto passado, foi um fracasso
de bilheteria no mundo inteiro.
Deriva de uma peça de teatro
em que um casal se encontra e
se ama. Tremendo amor, agente de contágio para uma loucura destruidora, em que insetos
imaginários invadem os corpos. A câmera de Friedkin
transfigura as origens teatrais
como se captasse o invisível.
Bunker
Em "Possuídos" [DVD Califórnia], o alojamento num desses motéis americanos em que
a heroína vive termina revestido de plástico, de papel alumínio, para proteger o casal de sua
paranóia. Nada adianta, está
claro, porque os vírus estão na
alma. Mas a projeção física dessa loucura nos cenários a torna
tangível. Casas, quartos, coisas,
não fazem mais do que abrigar
os fantasmas de cada um.
jorgecoli@uol.com.br
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