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Beat órfão
Lançando novo álbum nos EUA, Tom Waits fala da influência de Kerouac e Ginsberg, de alcoolismo e do sucesso recente, após anos de ostracismo
Divulgação
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Tom Waits (à dir.), em cena de "Sobre Café e Cigarros", dirigido por Jim Jarmusch |
SEAN O'HAGAN
Quando Tom Waits
era garoto, ele ouvia o mundo de
maneira diferente.
Às vezes o mundo soava tão desafinado que o
assustava. O farfalhar de uma
folha de papel era capaz de fazê-lo recuar; o som de sua mãe
ajustando os cobertores à sua
volta, quando o colocava na cama, podia fazê-lo se encolher,
como se estivesse sentindo dor.
"Não era legal", diz ele, fazendo um gesto de "não" com a
cabeça, caso ainda restasse alguma dúvida. "Era uma coisa
assustadora. Às vezes eu achava que era mentalmente doente -pensava que talvez fosse
retardado. Eu colocava minha
mão sobre um lençol, assim
[esfregando sua camisa], e o
som que ouvia era como o de
uma lixa. Ou o de um avião passando ao alto."
"Já li que outras pessoas,
pessoas artísticas, também já
passaram por isso", diz Tom.
"Elas passaram por períodos
em que havia uma distorção no
mundo que as perturbava."
Então aqui estamos, 50 e
poucos anos mais tarde, e Tom
Waits criou uma carreira baseada em distorcer o mundo de
maneira freqüentemente perturbadora. Suas canções com
freqüência soam como se tivessem sido golpeadas até perder a
forma, passadas por uma centrífuga e então deixadas ao sol
para secar, até ficarem ressequidas e, de certo modo, puras
de espírito.
Álbum triplo
Seu novo álbum, "Orphans"
[Órfãos, CD importado Anti],
que é na realidade três em um, é
um mapa de desintegração,
grande e espalhado: um álbum
triplo contendo 54 canções, 30
delas novas em folha, sendo
que as outras foram pinçadas
de diversos trabalhos únicos,
trilhas sonoras e peças teatrais.
"Brawlers" é feito de
"stomps" de blues e rock nu e
cru; "Bawlers" é repleto das belas e desmontadas baladas de
Tom Waits, que sempre soam
estranhamente familiares;
"Bastards" é uma série de tremores e choques, explosões
ruidosas que variam de tom do
resmungo ao lunático.
É a primeira vez em mais de
20 álbuns que Tom Waits divide sua música em linhas tão genéricas. Concluo que, aos 57
anos, ele está finalmente se
abrandando. "Não sei", diz ele,
soando ainda mais áspero que
de costume -talvez até mesmo
um pouco ofendido.
"Só achei que ficariam mais
fáceis de ouvir se eu as dividisse
em categorias. É um prato combinado, algo raro e novo."
E uma canção se destaca. Intitulada "Road to Peace", trata
do conflito no Oriente Médio.
"Eu estava furioso", diz, suspirando e esfregando os olhos.
"Começou com algo que li no
jornal certo dia: "Ele estudava
tanto que parecia que teria um
futuro". Era sobre um garoto
que morreu depois da explosão
de uma bomba num ônibus, em
Israel. Dizem que Deus dá o frio
conforme o cobertor. Não sei se
acredito nisso."
Digo que ele provavelmente
será criticado pelo verso "...por
que estamos armando o Exército israelense com canhões, tanques e balas?". Tom faz um gesto de assentimento com a cabeça. "Talvez. Mas estamos armando Israel, sim. Isso é fato.
Mas essa canção não fala de tomar partido -é uma crítica aos
dois lados. Tentei ser o mais
equilibrado possível."
Músico caseiro
Estamos sentados nos fundos do bar de ostras Little Amsterdam. É o tipo de lugar próprio de Tom: um restaurante
holandês um pouco decadente
onde bandas de mariachis costumavam tocar nos fins de semana, até que a licença de entretenimento do proprietário
foi revogada.
Tom Vive num rancho em
Napa Valley, perto de Santa Rosa. Hoje em dia não se aventura
muito longe de casa -são os
músicos que vão a ele. Suas turnês tendem a ser curtas e infreqüentes. "É preciso manter [o
público] sedento", brinca.
Estamos sentados diante de
uma mesa capenga, ao lado de
um piano quebrado, deformado pela chuva. Tom Waits toma
café preto num copo de papel e
usa um terno pelo menos um
tamanho pequeno demais, botas de motociclista surradas e
um ar de experiência veterana
que diz "já vi de tudo".
Seu cabelo está mais ralo
agora, mas ainda manifesta espírito independente. Seu violão
está aninhado em seu estojo,
sobre o asfalto, e sobre o estojo
há um chapéu gasto, daqueles
cujas abas são reviradas em toda a sua volta.
Muito tempo atrás, quando
primeiro topei com Tom Waits,
todas as suas canções pareciam
falar de beber e perder seu caminho no meio da bruma.
Seu primeiro disco foi "Closing Time" (Hora de Fechar),
mas soava mais como um lugar
cativo no bar mais solitário do
mundo.
Durante seis álbuns gravados
com a Asylum Records, desde
seu acima mencionado álbum
de estréia, de 1973, até "Heartattack and Vine", de 1980,
Tom Waits foi o bardo do banquinho de bar, com voz rouca e
manchada de cerveja -um
beatnik tardio com fígado ruim
e coração partido, cujos fãs
eram poucos e esparsos, mas
totalmente devotados a ele.
A influência beat
Durante muito tempo parecia que Waits permaneceria como figura cult, alguém situado
no horizonte mais distante do
cenário musical dos anos 1970,
um trovador desajeitado alimentado com bourbon e Bukowski. Sua música sugeria -e,
em grau menor, ainda sugere- que os anos 1960 passaram totalmente ao largo de Tom; que,
em seu universo autocontido, a geração beat foi muito mais importante que os Beatles, que Sinatra tinha precedência sobre
os Stones.
Ele nasceu como Thomas
Alan Waits, em Pomona, Califórnia, em 7 de dezembro de
1949. Seus pais eram professores primários, mas sua infância
confortável de classe média foi
abalada quando eles se divorciaram, em 1960.
Foi com certeza o momento
em que ficou obcecado pela
idéia de encontrar outro pai.
A salvação, pelo menos de
certa maneira, chegou quando
descobriu Kerouac e Ginsberg,
nos anos 1960, ícones literários
cool da década anterior. Até a
chegada de sua mulher, duas
décadas mais tarde, os escritores beat foram sua influência
mais importante.
"Eles foram figuras paternas", responde Tom, falando
baixinho, enquanto seus dedos
longos desenham círculos pequenos no café derramado sobre a mesa. "Eram as pessoas
junto às quais eu buscava
orientação. Meu pai partiu
quando eu tinha 10 anos, então
eu vivia à procura de um pai.
"Você é meu pai? Você é meu
pai? E você, é meu pai?"."
Os trens que reaparecem a
toda hora em suas canções
também remetem a um sentimento de inquietação em sua
infância, o desejo urgente de
perambular que permaneceria
até ele encontrar a mulher com
quem se casaria.
Tom Waits saiu de casa aos
15 anos, encontrando trabalho
temporário primeiro como cozinheiro e depois como leão-de-chácara de uma boate. Ele
se mudava constantemente,
tendo em vários momentos
morado em seu carro, e estava
sempre compondo canções.
Salvação
Mas, por maravilhosos que
fossem vários de seus primeiros álbuns, sua inspiração estava perdendo força. E o mesmo
estava acontecendo com sua
ambição.
"Tinha um problema", explica. "Um problema com o álcool,
algo que muitas pessoas vêem
como sendo um risco ocupacional. Minha mulher salvou minha vida."
Kathleen Brennan era uma
roteirista que Waits conheceu
em 1978, quando acabava de
lançar-se em sua outra carreira,
mais inconstante: a de ator. Os
dois se conheceram no set de
"A Taberna do Inferno", veículo para o então jovem Sylvester
Stallone que incluía uma ponta
de Waits, que representou uma
versão dele mesmo: um pianista chamado Mumbles.
Brennan e Waits se casaram
em 1980. Garota criada numa
fazenda de Illinois em família
católica irlandesa, Kathleen foi
a catalisadora da transformação dramática e profunda na
música de Waits que aconteceu
com o lançamento de "Swordfishtrombones", em 1983.
"Eu não me casei apenas com
uma mulher linda", diz ele.
"Casei-me também com uma
coleção de discos."
As canções que ele escreve
com Kathleen freqüentemente
são repletas de ecos de canções
mais antigas. Em "Órfãos" também se ouvem traços de John
Lee Hooker e John McCormack, os Louvin Brothers e os
Clancy Brothers.
Kathleen é sua colaboradora
há quase 25 anos. Eles têm três
filhos -Casey, Kelly e Sullivan-, e Casey hoje toca bateria
na banda do pai. Quando perguntaram a Tom, certa vez,
qual tinha sido a contribuição
de sua mulher, ele respondeu:
"Sangue, bebida e culpa".
Isso é prático, já que o próprio Waits não toma álcool há
14 anos. Quando ele diz que
Kathleen salvou sua vida, está
falando literalmente.
Até que ponto, para ele, foi
difícil parar? "Foi difícil. Freqüentei os Alcoólicos Anônimos. Estou limpo e sóbrio. Viva! Mas foi uma luta."
Pergunto se ele compunha
canções de tipo diferente na
época em que bebia.
Reflete por um instante e então responde: "Não. Acho que
não. Quero dizer, quando você
bebe e usa drogas, nunca tem
certeza absoluta se os espíritos
que se movem em você são seus
mesmos ou se são os da bebida.
E, em dado momento, você passa a ter medo da resposta. Essa
é uma das maiores razões que
impedem as pessoas de ficar sóbrias: elas têm medo de descobrir que era o álcool falando, o
tempo todo".
Respeito ao talento
Percebe-se que Tom respeita
seu talento, o alimenta e nunca
o aceita como algo garantido;
que tem uma fé quase espiritual na canção.
Recentemente, essa fé vem
até lhe rendendo frutos comerciais. Seu último álbum, "Real
Gone", de 2004, um trabalho
tosco e forte até mesmo pelos
padrões de Tom Waits, seguiu
"Mule Variations", de 1999, entrando nas paradas pop americanas e britânicas.
Enquanto nosso tempo reservado chega ao fim, e Waits
vai ficando inquieto, começamos a trocar canções, histórias
e piadas favoritas.
Ele pega seu chapéu e o bate
para tirar a poeira.
"Um dia, terei partido, e as
pessoas vão ouvir minhas canções e ver minha imagem diante delas. Para que isso aconteça,
você precisa inserir alguma coisa sua na canção. Como uma
cápsula do tempo ou como fazer uma boneca de vodu. Você
precisa embrulhar a boneca
com um barbante, colocar uma
pedra dentro da cabeça e depois usar dois pauzinhos e alguma coisa de uma teia de aranha.
É preciso colocar tudo isso dentro da canção para que ela sobreviva."
Digo a ele que acho que não
tem nada a temer nesse quesito. As melhores canções de
Tom Waits vão continuar no ar
muito tempo depois de nós dois
termos partido.
Como sombras, como fantasmas, como ecos.
A íntegra deste texto saiu no "Guardian".
Tradução de Clara Allain.
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