São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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Beat órfão

Lançando novo álbum nos EUA, Tom Waits fala da influência de Kerouac e Ginsberg, de alcoolismo e do sucesso recente, após anos de ostracismo

Divulgação
Tom Waits (à dir.), em cena de "Sobre Café e Cigarros", dirigido por Jim Jarmusch


SEAN O'HAGAN

Quando Tom Waits era garoto, ele ouvia o mundo de maneira diferente. Às vezes o mundo soava tão desafinado que o assustava. O farfalhar de uma folha de papel era capaz de fazê-lo recuar; o som de sua mãe ajustando os cobertores à sua volta, quando o colocava na cama, podia fazê-lo se encolher, como se estivesse sentindo dor.
"Não era legal", diz ele, fazendo um gesto de "não" com a cabeça, caso ainda restasse alguma dúvida. "Era uma coisa assustadora. Às vezes eu achava que era mentalmente doente -pensava que talvez fosse retardado. Eu colocava minha mão sobre um lençol, assim [esfregando sua camisa], e o som que ouvia era como o de uma lixa. Ou o de um avião passando ao alto."
"Já li que outras pessoas, pessoas artísticas, também já passaram por isso", diz Tom. "Elas passaram por períodos em que havia uma distorção no mundo que as perturbava." Então aqui estamos, 50 e poucos anos mais tarde, e Tom Waits criou uma carreira baseada em distorcer o mundo de maneira freqüentemente perturbadora. Suas canções com freqüência soam como se tivessem sido golpeadas até perder a forma, passadas por uma centrífuga e então deixadas ao sol para secar, até ficarem ressequidas e, de certo modo, puras de espírito.

Álbum triplo
Seu novo álbum, "Orphans" [Órfãos, CD importado Anti], que é na realidade três em um, é um mapa de desintegração, grande e espalhado: um álbum triplo contendo 54 canções, 30 delas novas em folha, sendo que as outras foram pinçadas de diversos trabalhos únicos, trilhas sonoras e peças teatrais.
"Brawlers" é feito de "stomps" de blues e rock nu e cru; "Bawlers" é repleto das belas e desmontadas baladas de Tom Waits, que sempre soam estranhamente familiares; "Bastards" é uma série de tremores e choques, explosões ruidosas que variam de tom do resmungo ao lunático.
É a primeira vez em mais de 20 álbuns que Tom Waits divide sua música em linhas tão genéricas. Concluo que, aos 57 anos, ele está finalmente se abrandando. "Não sei", diz ele, soando ainda mais áspero que de costume -talvez até mesmo um pouco ofendido.
"Só achei que ficariam mais fáceis de ouvir se eu as dividisse em categorias. É um prato combinado, algo raro e novo." E uma canção se destaca. Intitulada "Road to Peace", trata do conflito no Oriente Médio.
"Eu estava furioso", diz, suspirando e esfregando os olhos. "Começou com algo que li no jornal certo dia: "Ele estudava tanto que parecia que teria um futuro". Era sobre um garoto que morreu depois da explosão de uma bomba num ônibus, em Israel. Dizem que Deus dá o frio conforme o cobertor. Não sei se acredito nisso."
Digo que ele provavelmente será criticado pelo verso "...por que estamos armando o Exército israelense com canhões, tanques e balas?". Tom faz um gesto de assentimento com a cabeça. "Talvez. Mas estamos armando Israel, sim. Isso é fato. Mas essa canção não fala de tomar partido -é uma crítica aos dois lados. Tentei ser o mais equilibrado possível."

Músico caseiro
Estamos sentados nos fundos do bar de ostras Little Amsterdam. É o tipo de lugar próprio de Tom: um restaurante holandês um pouco decadente onde bandas de mariachis costumavam tocar nos fins de semana, até que a licença de entretenimento do proprietário foi revogada. Tom Vive num rancho em Napa Valley, perto de Santa Rosa. Hoje em dia não se aventura muito longe de casa -são os músicos que vão a ele. Suas turnês tendem a ser curtas e infreqüentes. "É preciso manter [o público] sedento", brinca.
Estamos sentados diante de uma mesa capenga, ao lado de um piano quebrado, deformado pela chuva. Tom Waits toma café preto num copo de papel e usa um terno pelo menos um tamanho pequeno demais, botas de motociclista surradas e um ar de experiência veterana que diz "já vi de tudo".
Seu cabelo está mais ralo agora, mas ainda manifesta espírito independente. Seu violão está aninhado em seu estojo, sobre o asfalto, e sobre o estojo há um chapéu gasto, daqueles cujas abas são reviradas em toda a sua volta.
Muito tempo atrás, quando primeiro topei com Tom Waits, todas as suas canções pareciam falar de beber e perder seu caminho no meio da bruma. Seu primeiro disco foi "Closing Time" (Hora de Fechar), mas soava mais como um lugar cativo no bar mais solitário do mundo.
Durante seis álbuns gravados com a Asylum Records, desde seu acima mencionado álbum de estréia, de 1973, até "Heartattack and Vine", de 1980, Tom Waits foi o bardo do banquinho de bar, com voz rouca e manchada de cerveja -um beatnik tardio com fígado ruim e coração partido, cujos fãs eram poucos e esparsos, mas totalmente devotados a ele.

A influência beat
Durante muito tempo parecia que Waits permaneceria como figura cult, alguém situado no horizonte mais distante do cenário musical dos anos 1970, um trovador desajeitado alimentado com bourbon e Bukowski. Sua música sugeria -e, em grau menor, ainda sugere- que os anos 1960 passaram totalmente ao largo de Tom; que, em seu universo autocontido, a geração beat foi muito mais importante que os Beatles, que Sinatra tinha precedência sobre os Stones.
Ele nasceu como Thomas Alan Waits, em Pomona, Califórnia, em 7 de dezembro de 1949. Seus pais eram professores primários, mas sua infância confortável de classe média foi abalada quando eles se divorciaram, em 1960. Foi com certeza o momento em que ficou obcecado pela idéia de encontrar outro pai.
A salvação, pelo menos de certa maneira, chegou quando descobriu Kerouac e Ginsberg, nos anos 1960, ícones literários cool da década anterior. Até a chegada de sua mulher, duas décadas mais tarde, os escritores beat foram sua influência mais importante.
"Eles foram figuras paternas", responde Tom, falando baixinho, enquanto seus dedos longos desenham círculos pequenos no café derramado sobre a mesa. "Eram as pessoas junto às quais eu buscava orientação. Meu pai partiu quando eu tinha 10 anos, então eu vivia à procura de um pai. "Você é meu pai? Você é meu pai? E você, é meu pai?"."
Os trens que reaparecem a toda hora em suas canções também remetem a um sentimento de inquietação em sua infância, o desejo urgente de perambular que permaneceria até ele encontrar a mulher com quem se casaria.
Tom Waits saiu de casa aos 15 anos, encontrando trabalho temporário primeiro como cozinheiro e depois como leão-de-chácara de uma boate. Ele se mudava constantemente, tendo em vários momentos morado em seu carro, e estava sempre compondo canções.

Salvação
Mas, por maravilhosos que fossem vários de seus primeiros álbuns, sua inspiração estava perdendo força. E o mesmo estava acontecendo com sua ambição. "Tinha um problema", explica. "Um problema com o álcool, algo que muitas pessoas vêem como sendo um risco ocupacional. Minha mulher salvou minha vida."
Kathleen Brennan era uma roteirista que Waits conheceu em 1978, quando acabava de lançar-se em sua outra carreira, mais inconstante: a de ator. Os dois se conheceram no set de "A Taberna do Inferno", veículo para o então jovem Sylvester Stallone que incluía uma ponta de Waits, que representou uma versão dele mesmo: um pianista chamado Mumbles.
Brennan e Waits se casaram em 1980. Garota criada numa fazenda de Illinois em família católica irlandesa, Kathleen foi a catalisadora da transformação dramática e profunda na música de Waits que aconteceu com o lançamento de "Swordfishtrombones", em 1983. "Eu não me casei apenas com uma mulher linda", diz ele.
"Casei-me também com uma coleção de discos." As canções que ele escreve com Kathleen freqüentemente são repletas de ecos de canções mais antigas. Em "Órfãos" também se ouvem traços de John Lee Hooker e John McCormack, os Louvin Brothers e os Clancy Brothers.
Kathleen é sua colaboradora há quase 25 anos. Eles têm três filhos -Casey, Kelly e Sullivan-, e Casey hoje toca bateria na banda do pai. Quando perguntaram a Tom, certa vez, qual tinha sido a contribuição de sua mulher, ele respondeu: "Sangue, bebida e culpa".
Isso é prático, já que o próprio Waits não toma álcool há 14 anos. Quando ele diz que Kathleen salvou sua vida, está falando literalmente. Até que ponto, para ele, foi difícil parar? "Foi difícil. Freqüentei os Alcoólicos Anônimos. Estou limpo e sóbrio. Viva! Mas foi uma luta." Pergunto se ele compunha canções de tipo diferente na época em que bebia.
Reflete por um instante e então responde: "Não. Acho que não. Quero dizer, quando você bebe e usa drogas, nunca tem certeza absoluta se os espíritos que se movem em você são seus mesmos ou se são os da bebida. E, em dado momento, você passa a ter medo da resposta. Essa é uma das maiores razões que impedem as pessoas de ficar sóbrias: elas têm medo de descobrir que era o álcool falando, o tempo todo".

Respeito ao talento
Percebe-se que Tom respeita seu talento, o alimenta e nunca o aceita como algo garantido; que tem uma fé quase espiritual na canção. Recentemente, essa fé vem até lhe rendendo frutos comerciais. Seu último álbum, "Real Gone", de 2004, um trabalho tosco e forte até mesmo pelos padrões de Tom Waits, seguiu "Mule Variations", de 1999, entrando nas paradas pop americanas e britânicas. Enquanto nosso tempo reservado chega ao fim, e Waits vai ficando inquieto, começamos a trocar canções, histórias e piadas favoritas.
Ele pega seu chapéu e o bate para tirar a poeira. "Um dia, terei partido, e as pessoas vão ouvir minhas canções e ver minha imagem diante delas. Para que isso aconteça, você precisa inserir alguma coisa sua na canção. Como uma cápsula do tempo ou como fazer uma boneca de vodu. Você precisa embrulhar a boneca com um barbante, colocar uma pedra dentro da cabeça e depois usar dois pauzinhos e alguma coisa de uma teia de aranha. É preciso colocar tudo isso dentro da canção para que ela sobreviva."
Digo a ele que acho que não tem nada a temer nesse quesito. As melhores canções de Tom Waits vão continuar no ar muito tempo depois de nós dois termos partido. Como sombras, como fantasmas, como ecos.


A íntegra deste texto saiu no "Guardian". Tradução de Clara Allain.


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