São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997.

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As utopias de Quaderna-Suassuna

Leonardo Colosso/ Folha Imagem
O escritor Ariano Suassuna no Teatro Brincante, em São Paulo


NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Ariano Suassuna, quando esteve em São Paulo para a aula-espetáculo em que apresentou ``A História do Amor de Romeu e Julieta'', recebeu a Folha para uma longa entrevista em que narrou passagens de sua vida. A seguir, em versão resumida, algumas delas.


Catolicismo - Fui educado num colégio protestante porque mamãe era protestante, mas eu nunca fui. Na adolescência passei por uma fase em que eu não queria negócio com religião nenhuma. Depois achei que tinha que me responder se Deus existia. Recebi a influência de duas grandes figuras, que não eram católicas, mas eram próximas. Dostoievski era cristão, mas não católico. O outro era Unamuno, o grande pensador espanhol, que era um católico, digamos, heterodoxo. Eu li uma frase de Dostoievski que me impressionou profundamente. É dos ``Irmãos Karamazov''. Diz, ``se Deus não existe, tudo é permitido''. Foi um choque. Quando li foi um choque, porque eu vi que era verdade. Se não existe regra moral indiscutível, emanada de uma coisa superior, tudo é permitido. Você resolve dizer que matar criança é legítimo. Aí eu digo, ``mas, meu amigo, é repugnante''. Você diz, ``mas a mim não parece''. Se não existir uma regra absoluta que diga que está errado, tudo é permitido. Dostoievski tem toda razão. A frase dele é definitiva. Aí eu digo, ``bom, então eu vou ver se Deus existe''. Como não aceitava que tudo fosse permitido, eu digo, ``então tem um limite''. Foi o começo da minha adesão ao catolicismo.

Místicos - Outra figura que exerceu influência muito grande foi Santa Tereza D'Avila. Unamuno tinha muita admiração por ela, então eu li e foi um deslumbramento. Os grandes místicos, Santa Tereza, São João da Cruz, são pessoas que achavam que ainda na Terra você pode ter a experiência da união com Deus. Se você me pergunta se já tive, eu não tive, não. Gostaria muito. São João da Cruz, Santa Tereza são grandes figuras de místicos e grandes escritores. Eu gosto mais dela ainda do que dele. Descrevem experiências místicas de união com a divindade, e eu acredito que tiveram. Santa Tereza diz que a alma humana é um castelo no interior do qual Deus se encontra. Se a pessoa tiver raça suficiente, olha para dentro de si mesmo e vai entrar em união com Deus ainda aqui. A grande busca de Quaderna, em ``A Pedra do Reino'', é um castelo, que é uma alusão ao castelo de Santa Tereza. E Quaderna se surpreende no pé de um lajedo muito alto. Ele adormece e começa a sonhar que era obrigado a escalar, e lá em cima descobria que tudo era divino. O bem e o mal, a feiúra e a beleza, tudo era uma coisa só. Está lá contado, nos termos da linguagem de São João da Cruz.

Partido Comunista - Fundaram uma célula intelectual e eu fui, mas veja o que me aconteceu. Eu, felizmente ou infelizmente, sempre tive senso das coisas ridículas. Nessa época o Partido Comunista era tão sectário, que no programa havia um artigo proibindo os comunistas de falarem com os trotskistas. O comitê começou uma campanha tremenda contra os trotskistas. Os muros em São Paulo eram todos pichados, ``abaixo os trotskistas'' e coisa. Em Pernambuco também. E pela primeira vez eu fui ver como funcionava a célula intelectual, para eu então aderir ao Partido Comunista. Eu entrei com esse meu primo, Sebastião Simões, e me sentei. De repente entraram três pessoas, uma das quais, eu fui saber depois, era Diógenes Arruda. E ele tinha sido mandado por Prestes para dizer ao Partido Comunista de Pernambuco que não gastasse dinheiro, tempo e esforço combatendo trotskistas, que lá não tinha trotskista, não. Meu amigo, eu dei uma gargalhada. Eu disse, ``ó, você me desculpe, mas nesse partido eu não entro, não''.

João Grilo e Quaderna - Na Idade Média você tem a novela de cavalaria, cujo personagem é aristocrático. É uma novela idealista, mítica. Na Renascença você tem a novela picaresca. O Pícaro é um personagem pobre e astucioso, que emigra para cá por meio de figuras como Pedro Malasartes. Tanto o João Grilo de ``Auto da Compadecida'' quanto o Tonheta de Antônio Nóbrega são herdeiros dessa tradição. Quanto ao Quaderna, a meu ver ele é mais complexo. Ao mesmo tempo em que tem o lado astucioso, o lado quengo, ele tem um lado mítico e poético, porque tem uma fantasia mais desbragada. É aí que ele se julga um cavaleiro, monta e sai com bandeiras, porque tem um lado fantasioso, o que às vezes, para honra minha, tem levado alguns a compará-lo com d. Quixote. Mas d. Quixote lê o livro de cavalaria, acredita e quer se tornar cavaleiro. Quaderna lê os folhetos, como d. Quixote lia os livros de cavalaria, mas sabe que a tristeza da vida não se resolve com fantasias. Agora, o que ele pretende é, pela arte, criar um contraponto colorido e belo, poético, à monotonia da vida pobre e cinzenta dele. Mas ele é consciente disso.

Arraial - O Arraial, veja bem, está apenas anunciado. Será uma terceira fase. Repare, o movimento Armorial foi uma primeira fase, experimental. Agora vivemos a segunda, que é a fase Romançal. A fase Arraial está apenas anunciada e o nome Arraial foi escolhido como homenagem a Antônio Conselheiro e ao arraial de Canudos. Eu considero, juntamente com Palmares, o episódio de Canudos o mais significativo da história brasileira. Machado de Assis fazia uma distinção. Ele dizia, a expressão é dele, que o Brasil real é bom e revela os melhores instintos, mas o Brasil oficial é caricato e grotesco. Uma distinção que eu acho extraordinária. No meu entender, em Canudos, o que aconteceu foi o choque do Brasil oficial contra o Brasil real. Veja bem, eu considero, do ponto de vista da literatura, o cordel o único espaço no qual até hoje o povo brasileiro conseguiu se expressar sem deformações e sem imposições que viessem de cima ou de fora. Do mesmo jeito, Canudos foi a única vez em que o povo brasileiro, sem imposições nem deformações de fora ou de cima, se expressou a respeito do problema político, como é que ele sonhava uma comunidade organizada. De acordo com as utopias do Brasil real e não do Brasil oficial.

``Mangue beat'' - Chico Science foi me procurar. Tivemos uma conversa extraordinária. Ele me disse, ``Ariano, eu sou um armorial''. Eu disse a ele, ``olhe, Chico, você me desculpe, mas está cometendo um equívoco''. É um equívoco, porque ele parte da idéia de que pega os elementos da música popular, do maracatu rural etc. e aí, diz ele, para valorizar essa música, lança mão do rock, do rap. A meu ver, não está valorizando. Está vulgarizando. Como é que uma música inferior pode melhorar uma superior? A música brasileira da qual ele parte é de primeiríssima ordem. Quem fazia isso corretamente era Villa-Lobos, que pegava a música popular e transcendia, na busca de uma dimensão maior. Chico Science, a meu ver, está em posição equivocada. Agora, eu digo isso com o maior cuidado, porque eu gosto dele demais.

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