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POESIA
José Paulo Paes traduz três poemas do autor latino Ovídio, dois deles escritos durante seu exílio de Roma
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Um poeta entre os bárbaros
JOSÉ PAULO PAES
especial para a Folha
No ano 8 da nossa era, um édito
imperial baniu para sempre de Roma o seu poeta mais festejado,
aquele cujos versos galantes eram
cantados em festins, rabiscados
nos muros das encruzilhadas e
pintados nas paredes das casas de
Pompéia. Está-se falando de Públio Ovídio Nasão, autor da ``Arte
de Amar'' e das ``Metamorfoses'',
e último grande poeta da época de
Augusto. Ele foi contemporâneo
de Virgílio, Propércio, Horácio e
Tibulo, e seu desaparecimento, no
ano 17 d.C., assinalou o fim dessa
época de ouro da literatura latina.
Ovídio morreu desterrado em
Tomos, uma vila à beira do mar
Negro ou Ponto Euxino, no local
onde hoje se ergue a cidade de
Constanza, na Rumânia. Àquela
época, era uma região totalmente
inóspita, de longos e rigorosos invernos, habitada por bárbaros getas e sármatas que viviam em pé de
guerra contra os dominadores romanos. Longe dos belos jardins da
sua mansão de Roma, afastado para sempre do aconchego de seus
familiares e amigos da alta roda, o
poeta lá viveu os seus últimos
anos, encurtados pelas privações e
provações de um modo de vida
primitivo que não tardou a lhe
combalir a saúde.
Até hoje permanecem obscuras
as verdadeiras causas que levaram
Augusto a exilar para os confins do
império um poeta a quem vinha
distinguindo com os seus favores e
a quem acolhia em seu palácio. O
pretexto para o intempestivo édito
de banimento teria sido a imoralidade da "Arte de Amar", cujos
conselhos de sedução amorosa induziriam seus leitores ao adultério. Isso num momento em que o
todo-poderoso imperador de Roma estava empenhado, baldadamente embora, em moralizar os
costumes do patriciado.
Como a "Arte" já circulava havia vários anos e não era mais imoral que outras obras livremente lidas naqueles tempos de relaxamento, aventaram-se razões agravantes para o édito. Uma delas seria Ovídio ter acobertado os amores clandestinos de uma neta do
imperador, que acabou sendo
também exilada pelo avô. Outra
seria a malevolência de Lívia, esposa de Augusto, contra o poeta,
por ele estar ligado a um círculo
palaciano contrário à Tibério, filho do primeiro casamento de Lívia, a qual ambicionava para ele o
trono do império.
Fossem quais fossem as razões
do rancor de Augusto contra Ovídio, o certo é que nem as reiteradas
súplicas do poeta, nem as de sua
mulher ou de amigos seus influentes, conseguiram induzi-lo a revogar o édito ou mudar para região
menos inóspita o lugar de banimento. As súplicas de Ovídio estão
perpetuadas em duas coletâneas,
as "Tristes" e as "Pônticas", que
lhe reúnem os poemas do exílio. O
lastro autobiográfico e os acentos
do tocante desespero que galvanizam esses poemas dão-lhes um vigor expressivo e um interesse humano raros de encontrar-se na lírica da Antiguidade, em que o gosto da imitação e o recurso sistemático a um elenco de motivos mais
ou menos fixos continham as efusões da subjetividade dentro dos
quadros do convencional. Os poemas ovidianos do exílio rompem
os limites desse enquadramento
para fazer soar, numa antecipação
de séculos, a voz do Eu romântico
e pós-romântico que, no desfrute
dos "seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações" -a citação é de Hegel-,
toma consciência de si e do seu
próprio estar-no-mundo.
Para se ter uma idéia da distância
que separa a arte graciosamente
maliciosa e frívola dos poemas de
juventude de Ovídio da dramática
gravidade dos seus últimos poemas é instrutivo comparar a peça
dos ``Amores'' (I: 5) com as das
"Tristes" (V: 7) e das "Pônticas"
(I: V) para aqui trazidas em tradução. Os "Amores", escritos quando o poeta ainda não contava 20
anos de idade, estão compostos no
verso de eleição da poesia erótica
latina, o chamado "dístico elegíaco", formado de dois versos de
medidas diferentes. Esse verso
procede da antiga poesia grega,
onde era usado nas inscrições funerárias; mais tarde, desvinculou-se dessas conotações entre fúnebres e lamentosas. Estas, entretanto, vão reaparecer nos dísticos
dos poemas ovidianos de exílio, a
cujo tom de desalento e tristeza
quadra bem o adjetivo "elegíacos".
Enquanto a peça dos "Amores"
versa um tópico tradicional da lírica amorosa, qual seja a descrição
dos encantos do corpo feminino, a
elegia das "Tristes" mostra-nos
Ovídio a fazer da poesia escrita em
Tomos seu canal de comunicação
com a pátria que fora forçado a
abandonar para sempre; daí falar
ele em "carta" logo no verso de
abertura e confessar mais adiante
que no "estudo", ou seja, no
exercício da atividade intelectual,
encontra o único lenitivo ao seu alcance: "Nos versos busco olvido
das misérias que me afligem".
Além da breve, mas viva descrição
da aparência física e dos costumes
selváticos dos bárbaros entre os
quais habita, há nessa elegia um
pormenor altamente expressivo
da dramática do exílio: a perda
progressiva da língua-mãe pelo
"descostume" de usá-la; para não
a perder e à falta de interlocutores,
o poeta fala consigo próprio e se
esforça por lembrar "palavras
dessuetas" a fim de manter viva
sua identidade de "poeta romano".
Se, a despeito de serem cartas
versificadas, as "Tristes" se designam ainda como "elegias" por
causa dos dísticos em que estão vazadas, as "Pônticas", embora
compostas no mesmo tipo de verso, já se declaram "epístolas" e
trazem amiúde, logo abaixo do título, o nome de seu destinatário. A
que adiante se vai está endereçada
a Fábio Máximo, um dos poucos
amigos que permaneceu leal a Ovídio. Tanto assim que, na viagem
para Tomos, acompanhou-o pessoalmente até Brindes, sem medo
de comprometer-se aos olhos de
Augusto pela sua lealdade ao poeta, a quem muitos outros supostos
amigos voltaram as costas tão logo
o viram cair em desgraça. Nessa
epístola a Máximo, discute Ovídio
o porquê de continuar escrevendo
e justifica a espontaneidade
("Contento-me em compor o que
me venha facilmente"), tanto
quanto a rudez dos seus versos,
pelas adversidades de sua condição de exilado, de que eles seriam o
reflexo ou o homólogo fiel.
Os três poemas reproduzidos na
página ao lado fazem parte de uma
coletânea de traduções que fiz, do
latim, de poemas dos "Amores",
das "Tristes" e das "Pônticas".
Precedidos de uma breve introdução acerca da obra e da vida de
Ovídio, deverão ser proximamente publicados com o título de
"Poemas da Carne e do Exílio".
José Paulo Paes é poeta, tradutor e ensaísta,
autor de ``Prosas Seguidas de Odes Mínimas'' e
``A Aventura Literária''.
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