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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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"Um Imenso Portugal" reúne, entre outros, artigos do historiador Evaldo Cabral de Mello publicados na seção "Brasil 500", do "Mais!"

Dilemas da invenção do Brasil

Ronaldo Vainfas
especial para a Folha

Certa vez o próprio Evaldo Cabral de Mello me contou que somente gostava de escrever livros quando descobria um novo corpus documental, uma novidade que pudesse iluminar aspectos desconhecidos, ou quase, da história. Da história do Brasil antigo, poder-se-ia dizer -o colonial e imperial- e da história pernambucana em particular, o que se confirma mesmo na sua vasta e consagrada obra.
Eis por que, para quem conhece bem as obras do autor, não deixa de causar espanto, à primeira vista, este livro de ensaios, "Um Imenso Portugal", que reúne alguns prefácios, diversas resenhas publicadas em suplementos literários da grande imprensa, alguns artigos avulsos. Material já publicado, porém disperso, que valeu a pena ser reunido.
Evaldo Cabral de Mello fez bem em sair um pouco do seu estilo de historiador fidelíssimo a temas monográficos solidamente alicerçados em pesquisa empírica, pois o livro acaba dando excelente mostra da própria obra do autor e, mais que isso, de sua maneira de lidar com a história. Nele sobressai sua preocupação quase obsessiva com o detalhe factual, sua erudição em matéria de pesquisa arquivística e bibliográfica, sua argúcia em relacionar a história colonial luso-brasileira com a portuguesa e a européia, sua clareza em refletir teoricamente sobre as armadilhas inerentes ao ofício de historiador. Além disso, o livro exibe a notável capacidade de Evaldo em alternar escalas de observação com a mesma perícia, do nível macro ao microanalítico.
Reunindo 36 textos publicados em diversos tempos e por variados motivos, "Um Imenso Portugal" é obra de ecletismo temático formidável. Mas a leitura cuidadosa da obra permite identificar algumas linhas de força muito presentes na bibliografia do autor. A primeira dessas linhas de força, que aliás foi uma grande questão de nossa melhor bibliografia histórica -a de Gilberto, Sérgio Buarque, Caio Prado-, diz respeito à construção do Brasil.
No caso de Evaldo, historiador mais afinado com a pesquisa recente e por isso mesmo crítico do nacionalismo, melhor seria dizer "invenção" do Brasil -nem tanto construção dele. Uma invenção que, nos primórdios, exprimia um certo prolongamento de Portugal, como tinham advertido, de modos diferentes, Freyre e Sérgio Buarque.
No "Imenso Portugal" essa questão, sem dúvida generalizante, vem amiudada na análise de certos costumes alimentares, como a persistência da farinha de trigo sobre a mandioca, entre os colonos, até 1630, ou de diversos modelos culturais aqui adaptados. Por outro lado, é questão que atravessa o livro todo, em vários planos, pondo em cena bela novidade no tocante à história política: o dilema radical que, em momentos cruciais, viveu a Coroa portuguesa entre se mudar para o Brasil ou entregá-lo para outros países europeus. Um dilema que talvez tenha se insinuado no ocaso dos Avis veio à tona no século 17, em meio aos conflitos ibéricos e pernambucanos, e reapareceu com vigor na virada do 18 para o 19. É desse dilema que tratam vários ensaios sobre o início da União Ibérica, as guerras seiscentistas ou sobre a gestação da idéia de um império luso-brasileiro, esboçada por d. Luís da Cunha, ainda antes de Pombal, adensada por d. Rodrigo de Souza Coutinho e posta em prática por d. João 6º a partir de 1808.
Entrementes o autor discorre sobre diversos aspectos de nossa história colonial, trazendo contribuição como sempre original. É o caso da discussão sobre certo enigma iconográfico -a ausência das senzalas nos quadros dos pintores nassovianos- ou da microbiografia do mulato José, escravo pernambucano que se fez de blasfemo para cair na teia do Santo Ofício, preferindo as galés del rei, como pena, ao cativeiro do senhor opressivo. É o caso dos textos sobre navegação litorânea, a antiga cabotagem, entre sumacas e barcaças. É o caso de discussões preciosas sobre nossa história institucional, a exemplo da maior ou menor influência do "republicanismo holandês" no modelo camarário luso-brasileiro, no século 17, ou do "mimetismo revolucionário" da revolução pernambucana de 1817, que andou tentada a adotar o modelo constitucional norte-americano. Não resta dúvida de que o leitor viajará por diversos caminhos de nosso passado, alguns iluminados, outros escuros, partilhando a mesa de nossos colonos d'outrora, observando como viviam, alcançando o que pensavam, o que fizeram ou deixaram de fazer. A história desse Portugal que se prolonga no Brasil e vice-versa se faz ainda presente em reflexões sobre historiografia. No fundo do quadro, a discussão sobre como se construiu ou inventou o Brasil -colonial e escravocrata-, e nisso o autor navega entre diagnósticos, utopias ou balanços realizados por outros: Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Charles Boxer. Tudo entremeado com breves textos sobre historiografia ou teoria da história, a exemplo do ensaio sobre Collingwood, do texto sobre a coletânea de entrevistas "As Muitas Faces da História" ou do ensaio sobre recente obra de Hélio Jaguaribe. Neles Evaldo externa, de quando em vez, seu ceticismo diante da capacidade de o historiador dominar seu objeto. Não por acaso, aponta "o fosso entre a história que se pratica e a história que se teoriza", entre outros comentários um tanto melancólicos, por vezes exagerados, mas inevitáveis. Os ensaios teórico-metodológicos entram salteados no livro com pertinência, pois mostram como e por que o autor valoriza as matérias que estuda ou os detalhes que sublinha.

Clássicos
Imenso Portugal prolongado no Brasil, como a "jangada de pedra" de Saramago. O antepenúltimo passo é a discussão sobre a "interiorização da metrópole", texto em que Evaldo revaloriza a obra clássica de Oliveira Lima sobre d. João 6º, "et pour cause". O penúltimo passo é o comentário sobre a publicação, décadas depois de escrito, do grande livro de Eduardo d'Oliveira França, "Portugal na Época da Restauração", obra que Evaldo festeja, com justiça, aproveitando para discutir a própria reinvenção de Portugal a partir da revolta brigantina, urdida numa corte d'aldeia, em Vila Viçosa. O último passo é texto sobre o livro de Jacqueline Hermann, "No Reino do Desejado", versando nada menos que sobre a construção do sebastianismo em Portugal.
E assim Evaldo termina o livro, com texto intitulado "À Espera da Redenção Nacional" -no caso, a lusitana-, ele que, no ensaio "Fabricando a Nação", iniciara com frase sugestiva: "O nacionalismo brasileiro não precedeu, sucedeu, a criação do Estado nacional". De certo modo -e isso vai por minha conta-, desde os Avis, depois com os Braganças, o caso português não foi muito diferente. Talvez por isso Portugal tenha largado na frente da expansão européia no século 15 e tenha logrado escapar, no século 17, da voracidade anexionista dos Habsburgos espanhóis.


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros.


Um Imenso Portugal
368 págs., R$ 33,00

de Evaldo Cabral de Mello. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-6777).


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