São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Os imperdoáveis

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O que me interessa é contar histórias e o que me tocou em "O Segredo de Brokeback Mountain" foi a força do sentimento amoroso", declarou Ang Lee. Há um livro de referência sobre narrações que falam dessa força. É "L'Amour et l'Occident", escrito por Denis de Rougemont, publicado em 1939. Ganhou, no Brasil, o título de "História do Amor no Ocidente" (Ediouro). Rougemont parte de Tristão e Isolda como o arquétipo das grandes paixões que nutriram a literatura.
As interdições, os empecilhos, as dificuldades fortalecem os sentimentos, que, ao serem contrariados, ampliam-se em modo desmedido e só se resolvem com a morte. "Romeu e Julieta" reelabora e confirma esse modelo.
Ang Lee o retoma, inovando-o pelo caráter homossexual, novidade acentuada ao situá-lo num meio que se caracteriza pela masculinidade. Ocorre, no entanto, que os universos muito viris, como o do western, contêm sempre, latentes, pulsões homoeróticas. "Brokeback Mountain" veio expor aquilo que, antes, nos filmes de caubói, era velado. Assim, uma lógica subterrânea termina por brotar à superfície, conferindo ao filme o curioso sentimento de se impor graças a uma espécie de necessidade histórica.
Um pouco à maneira de "Flechas Ardentes", de Delmer Daves, que, em 1950, teria inaugurado os filmes de faroeste com índios bons. Essas obras existiram fatalmente num certo momento propício (fatalidade descoberta depois que elas apareceram, está claro) e atuam em mudanças de concepções, de comportamentos coletivos.

Carochinha
"E foram felizes para sempre." Os contos de fadas terminam aí, porque o amor bem-aventurado dá apenas casamentos duráveis, e não boas histórias. Dois caubóis vivendo juntos e contentes, cuidando de um rancho; isso não tem grande interesse, a não ser como situação de base para alguma comédia na qual o núcleo esteja fora da felicidade. Ang Lee evita peripécias.
Quando a intensidade dos afetos se constitui e une para sempre os protagonistas, atinge-se uma plenitude quase metafísica. As mulheres e seus destinos frustrados são convincentes e verdadeiros, mas formam episódios secundários. Fora dessa intensidade, tudo perde em significação; casamentos, famílias, divórcio se dissolvem no princípio do obstáculo.
"Brokeback Mountain" devolveu ao filme de amor uma grandeza e uma veemência visuais que há muito não se via. As falas são rudimentares: não importa, a atração, física e apaixonada, dispensa palavras. Ela se integra à paisagem imensa, na movimentação dos grandes rebanhos de carneiros. A montanha não é apenas refúgio simbólico: sua solidão magnífica é sentida visualmente, uma solidão protetora, solidão a dois. Ela torna mais dolorosa e mesquinha a solidão quando um se afasta do outro e do paraíso que perderam. A câmera de Ang Lee é generosa com os grandes espaços, íntima com os dois caubóis, confinada, quase claustrofóbica, quando eles se atolam nas vidas bem regradas.

Verde
O gênio de Ang Lee tende a se concentrar em pulsões determinantes. Embora invisíveis, o espectador as intui como presentes e primordiais. Elas contam e permanecem; o resto são circunstâncias efêmeras, por mais infelizes e dolorosas. "Hulk" trazia a obsessão das origens, da memória, a rebeldia contra o pai onipotente: um filme de super-herói em que a ação começa bem tarde, porém no qual a angústia se instala desde o início. "Brokeback Mountain" centra-se no amor e no desejo. Os encontros são breves e raros, mas têm a eternidade da montanha. O resto é tempo gasto, desperdiçado, triste.

Máscaras
Leitores escreveram sobre o último filme de Woody Allen, "Ponto Final - Match Point", assunto de um recente "Ponto de Fuga". Alguns assinalaram a semelhança entre o tenista e o Ripley de Patricia Highsmith. Há pontos em comum, de fato: ambos se servem do crime para a ascensão social, para ambos o acaso é generoso. Ripley, porém, assume inteiramente a identidade de um outro, e suas estratégias são muito mais calculadas. Sobretudo, demonstra prazer na própria usurpação. Não tem remorsos nem fantasmas à noite.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica - Ruy Guerra: Tempo e espaço
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.