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Ponto de fuga
Os imperdoáveis
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O que me interessa é contar histórias e o que me tocou em "O Segredo de Brokeback Mountain"
foi a força do sentimento amoroso", declarou Ang Lee. Há um livro de referência sobre narrações que falam dessa força. É "L'Amour et l'Occident", escrito por
Denis de Rougemont, publicado em 1939.
Ganhou, no Brasil, o título de "História do
Amor no Ocidente" (Ediouro). Rougemont parte de Tristão e Isolda como o arquétipo das grandes paixões que nutriram
a literatura.
As interdições, os empecilhos, as dificuldades fortalecem os sentimentos, que, ao
serem contrariados, ampliam-se em modo
desmedido e só se resolvem com a morte.
"Romeu e Julieta" reelabora e confirma esse modelo.
Ang Lee o retoma, inovando-o pelo caráter homossexual, novidade acentuada ao
situá-lo num meio que se caracteriza pela
masculinidade. Ocorre, no entanto, que os
universos muito viris, como o do western,
contêm sempre, latentes, pulsões homoeróticas. "Brokeback Mountain" veio expor
aquilo que, antes, nos filmes de caubói, era
velado. Assim, uma lógica subterrânea termina por brotar à superfície, conferindo ao
filme o curioso sentimento de se impor graças a uma espécie de necessidade histórica.
Um pouco à maneira de "Flechas Ardentes", de Delmer Daves, que, em 1950, teria
inaugurado os filmes de faroeste com índios bons. Essas obras existiram fatalmente
num certo momento propício (fatalidade
descoberta depois que elas apareceram, está claro) e atuam em mudanças de concepções, de comportamentos coletivos.
Carochinha
"E foram felizes para sempre." Os contos
de fadas terminam aí, porque o amor bem-aventurado dá apenas casamentos duráveis, e não boas histórias. Dois caubóis vivendo juntos e contentes, cuidando de um
rancho; isso não tem grande interesse, a
não ser como situação de base para alguma
comédia na qual o núcleo esteja fora da felicidade. Ang Lee evita peripécias.
Quando a intensidade dos afetos se constitui e une para sempre os protagonistas,
atinge-se uma plenitude quase metafísica.
As mulheres e seus destinos frustrados são
convincentes e verdadeiros, mas formam
episódios secundários. Fora dessa intensidade, tudo perde em significação; casamentos, famílias, divórcio se dissolvem no
princípio do obstáculo.
"Brokeback Mountain" devolveu ao filme de amor uma grandeza e uma veemência visuais que há muito não se via. As falas
são rudimentares: não importa, a atração,
física e apaixonada, dispensa palavras. Ela
se integra à paisagem imensa, na movimentação dos grandes rebanhos de carneiros. A montanha não é apenas refúgio simbólico: sua solidão magnífica é sentida visualmente, uma solidão protetora, solidão
a dois. Ela torna mais dolorosa e mesquinha a solidão quando um se afasta do outro
e do paraíso que perderam. A câmera de
Ang Lee é generosa com os grandes espaços, íntima com os dois caubóis, confinada,
quase claustrofóbica, quando eles se atolam nas vidas bem regradas.
Verde
O gênio de Ang Lee tende a se concentrar
em pulsões determinantes. Embora invisíveis, o espectador as intui como presentes e
primordiais. Elas contam e permanecem; o
resto são circunstâncias efêmeras, por mais
infelizes e dolorosas. "Hulk" trazia a obsessão das origens, da memória, a rebeldia
contra o pai onipotente: um filme de super-herói em que a ação começa bem tarde, porém no qual a angústia se instala desde o
início. "Brokeback Mountain" centra-se no
amor e no desejo. Os encontros são breves e
raros, mas têm a eternidade da montanha.
O resto é tempo gasto, desperdiçado, triste.
Máscaras
Leitores escreveram sobre o último filme
de Woody Allen, "Ponto Final - Match
Point", assunto de um recente "Ponto de
Fuga". Alguns assinalaram a semelhança
entre o tenista e o Ripley de Patricia Highsmith. Há pontos em comum, de fato: ambos se servem do crime para a ascensão social, para ambos o acaso é generoso. Ripley,
porém, assume inteiramente a identidade
de um outro, e suas estratégias são muito
mais calculadas. Sobretudo, demonstra
prazer na própria usurpação. Não tem remorsos nem fantasmas à noite.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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