São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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Compreensão de objetivos, métodos, contextos e biografias dos terroristas é essencial para ressaltar o horror dos atentados e, ao mesmo tempo, evitar o cerceamento das liberdades civis

A mecânica da destruição

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

O filme "Paradise Now", dirigido pelo palestino Hany Abu-Assad, que esteve entre os candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro, além da qualidade como cinema, tem um profundo interesse sociológico. Em primeiro lugar, pelo seu efeito de estranheza. Ao que me lembre, nunca tinha visto um filme falado em árabe e, mais ainda, nunca tinha visto imagens de cidades palestinas, a não ser as cenas fugidias da TV, em perpétuo movimento.
Diga-se de passagem, segundo a correspondente do jornal "El Pais" em Jerusalém, em matéria publicada em 2/3, que o desespero e a falta de perspectiva da maioria dos palestinos só é conhecida de perto pelos israelenses quando fazem o serviço militar. Não por acaso, quando da estréia de "Paradise Now" em Jerusalém Ocidental, uma jovem israelense, após a exibição, perguntou: "Nablus é de verdade assim?".


A resistência dos "partisans" franceses, italianos ou russos, tendo como alvo represen-tantes do regime nazista, deveria ser rejeitada?


Para além do confrangedor desconhecimento dos sentimentos mais profundos dos cidadãos de Israel e da Palestina, de parte a parte, a questão central do filme é o terrorismo, partindo de uma premissa básica: a de que os israelenses ocupam ilegalmente a terra palestina e, com sua política excludente, levaram o povo palestino ao desespero. Todos os protagonistas do filme estão imbuídos dessa convicção.
O problema desenvolvido pelos dois personagens centrais, a partir dessa premissa, é o das formas de enfrentar essa situação, pois eles oscilam entre converter-se em homens-bomba ou seguir métodos de luta não-violenta. É interessante lembrar que a defensora mais coerente da resistência nessa última dimensão é uma jovem que circulou pelo mundo ocidental.

Dimensões do terror
O terrorismo tomou tais dimensões reais e fantasmáticas que é difícil, nos dias de hoje, estabelecer diferenciações e analisar o fenômeno com frieza. Um autor de prestígio que se dispõe a fazê-lo é Timothy Garton Ash, professor da Universidade de Oxford, como se verifica em artigo publicado no "New York Review of Books", em novembro de 2001, com o sugestivo título de "Is There a Good Terrorist?" [Existe um Terrorismo Bom?].
Ash sustenta que há quatro fatores a serem examinados na análise do terrorismo: biografia dos envolvidos, objetivos, métodos e contexto. Desses fatores, os mais significativos são os três últimos. O autor trata de distinguir, no terreno dos objetivos, movimentos como o IRA [Exército Republicano Irlandês] e o ETA [grupo separatista basco] -que têm reivindicações nacionalistas concretas, por mais descabidas que possam ser- de outras organizações como a Al Qaeda ou a extinta Facção do Exército Vermelho, na Alemanha, cujos objetivos são vagos, apocalípticos, dissociados do mundo real, a não ser pelos estragos que causam ou causaram.
No que diz respeito aos métodos, uma linha divisória nem sempre nítida, mas essencial, separa a violência dirigida especificamente aos representantes armados do Estado da violência que tem como alvo não só essas pessoas como civis inocentes.
Por último, Ash se refere ao contexto, indicando a necessidade de tratar especificamente as várias situações, embora considere admirável o princípio de que "o emprego da violência em busca de objetivos políticos deve ser rejeitado completa e incondicionalmente".
De fato, o contexto é um complicador de peso na análise do terrorismo. Tomo aqui três exemplos para evidenciar sua importância.
O primeiro deles envolve uma situação-limite, nem por isso menos relevante. A resistência dos "partisans" franceses, italianos ou russos, nos territórios ocupados pelos alemães, tendo como alvo militares e outros representantes do regime nazista, deveria ser rejeitada "completa e incondicionalmente"?
Segundo exemplo: como deve ser avaliado o assassinato do almirante Carrero Blanco, figura-chave do governo de Franco, perpetrado pela ETA, em Madri, no ano de 1973, e que teria, segundo alguns, apressado a queda do ditador?
Terceiro e perturbador exemplo: as ações terroristas contra os ingleses na Palestina, praticadas pela organização direitista judaica Irgun Zvai Leumi, a partir de 1944, entre as quais figura a destruição dos escritórios da administração britânica, resultando na morte de 91 pessoas, encontrariam justificativa como atos presumivelmente conducentes a apressar a fundação do Estado de Israel? A meu ver, levando em conta sobretudo o contexto, uma resposta positiva caberia apenas no primeiro exemplo, por razões que mereceriam maior consideração à parte.

Motivação palestina
Voltando ao caso palestino e ao dilema apresentado em "Paradise Now" e deixando-se de lado a especificidade da autodestruição dos "homens-bomba", parece-me claro que não é obviamente o elemento "contexto" -a criação do Estado palestino- o fator determinante da condenação desses atos, e sim o método que envolve a morte de civis e o deliberado propósito de semear pânico na população israelense. Isso sem falar, já no terreno pragmático, e não no terreno moral, no dano que esses atos causam às reivindicações dos palestinos.
Por último, poderíamos nos perguntar sobre o sentido de uma discussão desse tipo. Não estaríamos, por uma via sofisticada, justificando o terrorismo? Não penso assim. Penso, pelo contrário, que especificar um fenômeno dessa natureza e tentar entendê-lo em circunstâncias históricas diversas é uma tarefa difícil, mas necessária. Ela nos ajuda a perceber a distância entre os grandes princípios e o realismo dos fatos, o que não quer dizer que a realização dos grandes princípios não seja um objetivo muito desejável.
Além disso, conhecer mais e melhor significa dar conteúdo ao horror que desperta a imensa maioria dos atos terroristas e, ao mesmo tempo, evitar a tentação de transformar a utilização do argumento antiterror em justificativa para o cerceamento das liberdades civis e para a implantação de um medo difuso.

Boris Fausto é historiador e presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de "Memória e História" (Graal). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.



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