São Paulo, domingo, 19 de março de 2006 |
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+ autores Compreensão de objetivos, métodos, contextos e biografias dos terroristas é essencial para ressaltar o horror dos atentados e, ao mesmo tempo, evitar o cerceamento das liberdades civis A mecânica da destruição
BORIS FAUSTO
Para além do confrangedor desconhecimento dos sentimentos mais profundos dos cidadãos de Israel e da Palestina, de parte a parte, a questão central do filme é o terrorismo, partindo de uma premissa básica: a de que os israelenses ocupam ilegalmente a terra palestina e, com sua política excludente, levaram o povo palestino ao desespero. Todos os protagonistas do filme estão imbuídos dessa convicção. O problema desenvolvido pelos dois personagens centrais, a partir dessa premissa, é o das formas de enfrentar essa situação, pois eles oscilam entre converter-se em homens-bomba ou seguir métodos de luta não-violenta. É interessante lembrar que a defensora mais coerente da resistência nessa última dimensão é uma jovem que circulou pelo mundo ocidental. Dimensões do terror O terrorismo tomou tais dimensões reais e fantasmáticas que é difícil, nos dias de hoje, estabelecer diferenciações e analisar o fenômeno com frieza. Um autor de prestígio que se dispõe a fazê-lo é Timothy Garton Ash, professor da Universidade de Oxford, como se verifica em artigo publicado no "New York Review of Books", em novembro de 2001, com o sugestivo título de "Is There a Good Terrorist?" [Existe um Terrorismo Bom?]. Ash sustenta que há quatro fatores a serem examinados na análise do terrorismo: biografia dos envolvidos, objetivos, métodos e contexto. Desses fatores, os mais significativos são os três últimos. O autor trata de distinguir, no terreno dos objetivos, movimentos como o IRA [Exército Republicano Irlandês] e o ETA [grupo separatista basco] -que têm reivindicações nacionalistas concretas, por mais descabidas que possam ser- de outras organizações como a Al Qaeda ou a extinta Facção do Exército Vermelho, na Alemanha, cujos objetivos são vagos, apocalípticos, dissociados do mundo real, a não ser pelos estragos que causam ou causaram. No que diz respeito aos métodos, uma linha divisória nem sempre nítida, mas essencial, separa a violência dirigida especificamente aos representantes armados do Estado da violência que tem como alvo não só essas pessoas como civis inocentes. Por último, Ash se refere ao contexto, indicando a necessidade de tratar especificamente as várias situações, embora considere admirável o princípio de que "o emprego da violência em busca de objetivos políticos deve ser rejeitado completa e incondicionalmente". De fato, o contexto é um complicador de peso na análise do terrorismo. Tomo aqui três exemplos para evidenciar sua importância. O primeiro deles envolve uma situação-limite, nem por isso menos relevante. A resistência dos "partisans" franceses, italianos ou russos, nos territórios ocupados pelos alemães, tendo como alvo militares e outros representantes do regime nazista, deveria ser rejeitada "completa e incondicionalmente"? Segundo exemplo: como deve ser avaliado o assassinato do almirante Carrero Blanco, figura-chave do governo de Franco, perpetrado pela ETA, em Madri, no ano de 1973, e que teria, segundo alguns, apressado a queda do ditador? Terceiro e perturbador exemplo: as ações terroristas contra os ingleses na Palestina, praticadas pela organização direitista judaica Irgun Zvai Leumi, a partir de 1944, entre as quais figura a destruição dos escritórios da administração britânica, resultando na morte de 91 pessoas, encontrariam justificativa como atos presumivelmente conducentes a apressar a fundação do Estado de Israel? A meu ver, levando em conta sobretudo o contexto, uma resposta positiva caberia apenas no primeiro exemplo, por razões que mereceriam maior consideração à parte. Motivação palestina Voltando ao caso palestino e ao dilema apresentado em "Paradise Now" e deixando-se de lado a especificidade da autodestruição dos "homens-bomba", parece-me claro que não é obviamente o elemento "contexto" -a criação do Estado palestino- o fator determinante da condenação desses atos, e sim o método que envolve a morte de civis e o deliberado propósito de semear pânico na população israelense. Isso sem falar, já no terreno pragmático, e não no terreno moral, no dano que esses atos causam às reivindicações dos palestinos. Por último, poderíamos nos perguntar sobre o sentido de uma discussão desse tipo. Não estaríamos, por uma via sofisticada, justificando o terrorismo? Não penso assim. Penso, pelo contrário, que especificar um fenômeno dessa natureza e tentar entendê-lo em circunstâncias históricas diversas é uma tarefa difícil, mas necessária. Ela nos ajuda a perceber a distância entre os grandes princípios e o realismo dos fatos, o que não quer dizer que a realização dos grandes princípios não seja um objetivo muito desejável. Além disso, conhecer mais e melhor significa dar conteúdo ao horror que desperta a imensa maioria dos atos terroristas e, ao mesmo tempo, evitar a tentação de transformar a utilização do argumento antiterror em justificativa para o cerceamento das liberdades civis e para a implantação de um medo difuso. Boris Fausto é historiador e presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de "Memória e História" (Graal). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!. Texto Anterior: Biblioteca básica - Ruy Guerra: Tempo e espaço Próximo Texto: + arte: Trilhas do caubói Índice |
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