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+ cultura
O influente crítico de arte americano Arthur Danto fala à Folha sobre
"A Transfiguração do Lugar-Comum", que está saindo no Brasil, ataca as limitações
de Adorno e Benjamin e discute o conceito de "fim da arte", que cunhou em 1984
Isto não é um quadro
PAULO GHIRALDELLI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Arthur C. Danto, filósofo e
crítico de arte influente do
"The Nation" (Nova York),
publica agora no Brasil um
de seus livros mais importantes, "A
Transfiguração do Lugar-Comum"
(ed. Cosacnaify, tradução de Vera
Pereira, 310 págs., R$ 59). Indo de
Andy Warhol a Hegel e Wittgenstein, passando por Cézanne, ele
mostra uma forma de fazer da filosofia uma apreciadora da arte que
honra a bela tradição norte-americana no campo da estética.
A famosa afirmação de Adorno de que escrever poesia após Auschwitz é obsceno me parece ela própria obscena
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Ainda que Danto não compartilhe
de idéias pragmatistas, ele vê a história da arte por meio de um pluralismo saudável, bastante comum entre
filósofos dos EUA (e cada vez mais
da Europa). O inovador em Danto,
além do fato de ele vir da filosofia
analítica para a crítica da arte sem
transformar a arte em "linguagem",
é que coloca para a nova geração um
passo diferente -e melhor- do
que aquele que a Escola de Frankfurt
deu no mesmo campo. Como ele
bem diz, os frankfurtianos tinham
uma visão "medieval" de arte.
Folha - O sr. poderia falar sobre o
conceito de "fim da arte"?
Arthur Danto - Em 1984, publiquei
um ensaio sobre o "fim da arte". Naquela época as pessoas do mundo da
arte pensavam em termos de "a próxima" coisa, como se, temporada
após temporada, a história fosse se
desdobrando. Até certo ponto me
parecia que não havia nenhuma
"próxima coisa". Meus argumentos
estavam baseados em algumas das
extraordinárias reviravoltas em arte
nos anos 60. Estava pensando, principalmente, em Warhol, que havia
exibido fac-símiles de cartões de remessa na galeria Stable em Manhattan, em 1964. Aquela exposição me
pôs interessado em filosofia da arte.
A questão em que me engajei era
esta: por que deveriam suas "Brillo
Boxes" ser obras enquanto as caixas
normais de palhas de aço, que vão
da fábrica ao depósito do supermercado, são meramente objetos utilitários? Elas parecem quase exatamente iguais. E então achava que a diferença entre arte e não-arte tinha de
ser invisível, uma vez que não havia
nenhuma diferença física relevante
entre as duas espécies de caixas.
Eu então achava que isso era perfeitamente geral, que se a "Brillo
Box" de Warhol fosse arte, qualquer
coisa poderia ser arte, e portanto não
havia nenhum modo especial de ser
da obra de arte.
Se não era mais possível dizer
quais eram as obras de arte -uma
vez que qualquer coisa poderia parecer uma obra de arte, e não ser uma
obra de arte-, não havia mais nenhuma direção na história. Tudo era
possível. Isso queria dizer que tudo
que tivesse sido pensado como importante sobre arte não mais pertencia ao conceito de arte. Uma definição filosófica de arte não poderia excluir nada. A arte estava liberada da
história da arte, era o que eu sentia.
Folha - Mas como fica a tese do "fim
da arte" hoje?
Danto - Como crítico, a tese do
"fim da arte" significava que não estaria interessado sobre se o que eu
estava escrevendo sobre arte era
"historicamente correto". Qualquer
coisa era possível, a idéia de direção
havia perdido todo o sentido. A cada
dia estou mais convencido da verdade essencial da minha tese, o que é
antes de tudo surpreendente. A tese
era menos óbvia em 1984 do que
veio a ser.
Não há direções. Haverá surpresas, mas não surpresas históricas ou
filosóficas. E, com o advento do globalização, há verdadeiramente uma
arte única no mundo, na qual qualquer um pode entrar. Não há nenhum centro real, como foram Paris
ou Nova York.
Folha - Não haverá surpresas ...
Bem, isso soa hegeliano, não?
Danto - Quando comecei a falar sobre "o fim a arte", alguém me contou
que Hegel tinha tido tal idéia. Ninguém na filosofia analítica levava
Hegel muito seriamente com um filósofo, mas eu então tinha de ler Hegel e realmente descobri que ele era
um tremendo filósofo da arte. Sua
visão do "fim da arte", contudo, era
bastante diferente da minha. Ele
acreditava que a arte não mais encontrava as necessidades espirituais
da humanidade. Somente a filosofia
poderia encontrá-las. Minha visão é
a oposta.
Por causa de seu pluralismo radical, a arte é capaz de encontrar nossas necessidades espirituais de beleza -pense em arte feminista, arte
gay ou no multiculturalismo. Mas a
filosofia perdeu sua capacidade de
fazer algo por alguém. Ninguém pode pensar como Hegel hoje em dia.
Minha visão do fim da arte é baseada na história interna da arte. Sua
natureza filosófica emergiu para a
consciência filosófica na década de
1960. Para Hegel, o fim da arte está
baseado em sua filosofia do espírito
-passamos da fase da arte e entramos na fase da filosofia. Mas no século 20, caímos verdadeiramente em
tempos difíceis. Ninguém sabe realmente o que ela é, para mais além.
Folha - Pluralismo e Hegel! Isso rende mais uma explicação, não é?
Danto - Como disse acima, sou o
crítico que sou porque sou o filósofo
que sou. Como um pluralista, não
tenho nenhuma base particular para
sustentar uma espécie de arte sobre
outra. Tomo cada coisa como aparece e tento tratá-la em seus próprios
termos. Em "A Transfiguração do
Lugar-Comum", avancei uma definição de obra de arte: algo em um
"artwork", se este incorpora significado. Isso rende uma fórmula para a
crítica. Tentar identificar o significado -a respeito de "o que é" a arte-
e então mostrar como aquele significado está incorporado ao objeto que
encontro e olho. Isto é: usar o significado para interpretar o objeto. Um
objeto interpretado corretamente é a
obra de arte.
Folha - O que pensa da Escola de
Frankfurt?
Danto - Os filósofos frankfurtianos
estão tão longe da arte como eu a entendo que eles poderiam muito bem
viver na Idade Média.
Em parte porque não sou um europeu, mas um americano, e em
parte porque eles não tiveram a experiência dos anos 60 que eu tive, vivendo em Manhattan. E, é claro,
porque eu não vejo nada no marxismo ou no realismo socialista; todavia eu posso entender como intelectuais da geração dos frankfurtianos
acreditaram nessas coisas.
Adorno era um homem pessimista, mas eu sou otimista por natureza.
A famosa afirmação de Adorno de
que escrever poesia após Auschwitz
é obsceno me parece ela própria
obscena. Por que as pessoas não escreveriam poesia? Em Nova York,
após o 11 de Setembro, milhares de
pessoas construíram santuários.
Elas estavam bastante emocionadas.
A arte é uma resposta natural após
uma tragédia -de algum modo, ela
cicatriza.
Walter Benjamin foi um homem
brilhante, mas sua tese sobre a reprodução mecânica da arte se tornou falsa. Como filósofo da arte, foi
sorte estar vivendo no tempo em
que vivo, quando tudo está mais claro, quando tudo é possível.
Folha - Mas há scholars que lembram da noção de aura (de Benjamin)
em relação ao seu trabalho.
Danto - A idéia de Benjamin de aura está em conexão com a arte e em
contraste com a arte reproduzida
mecanicamente. A cruz era a fotografia, que no tempo de Benjamin
não havia sido aceita como arte por
ser "mecânica". Mas agora os museus estão abertos à fotografia, e fotos são colecionadas, tornam-se algo
bastante caro.
Benjamin tinha um tipo de agenda
institucionalista -se mudamos as
instituições de arte, a política segue o
costume. O que ele não previu era
que o museu abriria as portas para
todos, tornando-se amplamente popular. Isso era uma teoria muito original, mas ela não funcionou na prática. Em um sentido importante, a
aura estava associada com artesanato e com a mão, e a reprodutibilidade mecânica, com as máquinas, com
câmeras. Isso, ao fim e ao cabo, não
teve nenhuma importância.
Folha - E como fica a arte em relação
à moral, para aqueles que defendem a
tese do "fim da arte"?
Danto - A visão de que qualquer
coisa pode ser uma obra não implica
que qualquer coisa seja moralmente
permissível na medida em que é arte. Se alguém decide assassinar seis
crianças e exibir os corpos como arte, isso que é arte de nenhum modo
diminui a atrocidade moral que é
matar crianças.
Minha visão da permissividade artística deixa a moralidade exatamente como ele era: algo pode ser arte e
imoral. A liberdade de expressão é
absoluta, mas o meio de expressão
pode ser moralmente proibido. Pois
não acredito em religião, não acredito que algo seja uma blasfêmia em
essência -mas certamente as coisas
podem ser de mau gosto. Diferença
de gosto é algo com que temos que
aprender a conviver.
Folha - O filósofo Richard Rorty tem
se mostrado pessimista em relação
aos EUA. E o sr.?
Danto - Vejo um bom futuro para
os EUA. Isso por que eles têm as
grandes instituições do século 18 e
daí, no fundo, uma filosofia iluminista encravada nessas instituições.
Essas instituições protegem as liberdades individuais básicas a despeito
das imensas pressões que de vez em
quando emergem, de modo que os
EUA são o país mais livre no mundo.
E temos vivido como uma democracia por mais de 200 anos, sem um
rei, uma aristocracia ou, nos tempos
modernos, um ditador ou uma junta
militar. Na Guerra Fria, que durou
40 anos, coisas terríveis foram feitas
pelos Estados Unidos, mas coisas
terríveis também foram feitas pela
União Soviética. Foi uma guerra de
filosofias em conflito. Aquela guerra
acabou, e a filosofia que os EUA sustentaram venceu.
Dadas as violações terríveis dos direitos humanos sob o socialismo, eu
sou feliz por termos vencido, mas o
preço foi horrível, especialmente para a América do Sul, onde há a questão dos ditadores que foram sustentados pelos Estados Unidos. Acho
que tem de haver uma anistia de ambos os lados agora.
Nova York, que eu amo, é um modelo para o mundo. Todo mundo
consegue se entender com todo
mundo, mesmo se, em outra parte
do mundo, eles estejam se dividindo
-judeus e árabes, sérvios e croatas,
curdos e turcos. O ar de Nova York é
feito de tolerância e liberdade. Em
todos os lugares do mundo as pessoas estão interessadas na cultura
norte-americana. Eles gostam da vida retratada nos filmes, nas canções
e na arte.
Penso, também, que qualquer um
está interessado no futuro dos EUA.
Se outros países vão mal, o mundo
segue seu curso. Mas se os EUA vão
mal, isso é ruim para o mundo. Eu
realmente gosto de ser americano.
O fato de pessoas de outros países
estarem interessadas em minha filosofia significa que elas têm de pensar
melhor sobre os EUA, uma vez que
minha filosofia não teria sido possível em qualquer outro lugar.
Mas há um monte de coisas erradas com os EUA. O país poderia
aprender muito com a Europa sobre
bem-estar social, por exemplo. A vida americana é cruel de uma maneira que não ocorre em outros países.
Poderia ser melhorada e deveria ser
melhorada. Mas acho que a idéia de
ser melhor está encravada na própria idéia de EUA.
Folha - O que o sr. acha do governo
de George W. Bush?
Danto - Bush é um presidente
ruim, em minha opinião. Sua filosofia é essencialmente aquela da maioria das pessoas conservadoras dos
EUA, que são os menos americanos
dos americanos. Eles estão convencidos de que aqueles que discordam
deles estão errados, que são completamente não-americanos. Seus interesses estão com a pior parte dos interesses de negócios americanos.
Assim, eles se opõem às pesquisas
sobre célula-tronco e ao Protocolo
de Kyoto [acordo que busca reduzir
as emissões de gases causadores do
aquecimento global].
A Guerra do Iraque foi algo para a
qual ele, Bush, estava disposto e que
fez do mundo um lugar bem mais
perigoso. Ele tem violado os direitos
privados de seus próprios cidadãos
para ampliar o poder presidencial.
Tudo isso é amplamente conhecido e entendido. E na hora certa, forças opositoras irão emergir para suplantar o programa de Bush. Todas
as coisas têm sido distorcidas por
medo do terrorismo, assim como,
na Guerra Fria, elas foram distorcidas por medo do comunismo.
Paulo Ghiraldelli Jr. é editor da revista
"Pragmatism Contemporary" e membro da
Sociedade Internacional de Pragmatismo.
Está para lançar, juntamente com Richard
Rorty, o livro "Ensaios Pragmatistas sobre
Subjetividade e Verdade" (ed. DPA).
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