São Paulo, domingo, 19 de abril de 2009

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Ponto de Fuga

Ópera enlatada


Meyerbeer foi esquecido, mas sem ele a "obra de arte total" de Wagner não existiria nem Mussorgski de "Boris Gudunov" nem Verdi de "Aida" nem mesmo "O Guarani", de Carlos Gomes

JORGE COLIM
COLUNISTA DA FOLHA

Poucos se lembram de Meyerbeer [1791-1864], compositor alemão celebérrimo em seu tempo. Viveu na França, onde impôs o gênero "grand opéra": óperas de amplo espetáculo, com massas corais, balés, cenários prodigiosos, efeitos fenomenais de inundações, incêndios, explosões, derrocadas.
Meyerbeer foi esquecido, mas sem ele a "obra de arte total" de Wagner não existiria nem Mussorgski de "Boris Gudunov" e "Khovanshchina"; nem Verdi de "Aida" e "D. Carlo" nem mesmo "O Guarani", de Carlos Gomes. De suas composições sobreviveu uma ária, cantada por Vasco da Gama em "A Africana", adaptação escalafobética de "Os Lusíadas".
Caruso deixou dela uma gravação impressionante, em que os pulmões se enchem de deslumbramento ao proclamar, com uma alegria ansiosa: "O nuovo mondo! Tu m'appartieni! A me! A me! A me!" (Oh, novo mundo! Tu me pertences! A mim! A mim! A mim!).
Fora disso, há a marcha da coroação, de "O Profeta", que era tocada em concertos mais leves e também por bandas de música: uns poucos acordes foram incorporados no desenho do Pica-Pau, "O Famoso Diplomata" (1945), mas hoje quase ninguém se lembra dela.
Alguns formaram a hipótese de que as cadências da ária "O Beau Pays", em "Os Huguenotes", sempre de Meyerbeer, inspiraram a risada do Pica-Pau, mas essa teoria não foi comprovada.
Em todo caso, o Pica-Pau é um grande cantor de ópera: nunca nenhum barítono conseguiu o que ele fez em sua apocalíptica interpretação do "Largo al Factotum", em "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini (desenho de 1944).

Cena
"Os Huguenotes", graças a Joan Sutherland; "A Africana"; "Robert le Diable", um pouco menos, são, de raro em raro, as óperas de Meyerbeer montadas hoje em dia.
Assim, a publicação em DVD de "Il Crociato in Egitto" (O Cruzado no Egito) surpreende.
Obra da juventude (1824), escrita antes que o compositor fosse para a França e atingisse sua imensa fama, foi logo esquecida.
O teatro La Fenice de Veneza, em que a ópera estreara havia mais de 180 anos, escalou-a em sua temporada de 2007. A produção foi filmada e é um esplendor.
Pier Luigi Pizzi concebeu um espetáculo despojado, acentuando a beleza suntuosa das roupas. As convenções teatrais que pareciam irremediavelmente envelhecidas ressurgem em sentidos complexos e situações comoventes. A escrita, dificílima para os cantores, interpretada de maneira prodigiosa, incendeia de desesperos os ornamentos e vocalises.

Som
Armando é o cruzado da história. Foi o último papel importante destinado a um castrato, homens de voz aguda porque eram operados na infância para tornarem-se grandes cantores.
Giambattista Velluti, o protagonista em 1824, foi célebre por suas habilidades vocais e por ser um incansável sedutor de mulheres, o que pode parecer um pouco paradoxal.
Hoje, só Michael Maniaci pode assumir o papel. Não é um contratenor; a conformação peculiar de sua garganta permite-lhe uma voz comparável à de um Velluti. Patrizia Ciofi, que tem solos aterradores, canta com ele duetos estratosféricos.

Arte
O tenor brasileiro Fernando Portari encarna Adriano, chefe dos cruzados. Portari, graças a seu belo timbre, sua força dramática e grande musicalidade é, com justiça, solicitado cada vez mais pelos teatros internacionais. Não fossem os outros momentos prodigiosos, apenas por sua cena da prece, comovente lição de belo canto sentida com intensidade, valeria adquirir esse DVD editado pela italiana Dynamic (2007).


jorgecoli@uol.com.br


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