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Baseado em fatos reais
Em "O Crime
do Restaurante Chinês",
o historiador Boris Fausto reconstitui uma chacina ocorrida
em São Paulo
em 1938
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Se a prática da micro-história tivesse por
parâmetro a qualidade do recente livro do
historiador e colunista da Folha Boris Fausto, "O
Crime do Restaurante Chinês
-Carnaval, Futebol e Justiça na
São Paulo dos Anos 30", cairiam no vazio as acusações de
que ela é uma contrafação da
escrita da história.
A micro-história é um modo
do fazer historiográfico que se
impôs desde a década de 1970,
contrastando com os quadros
panorâmicos de épocas marcantes, configurados, conforme a orientação ideológica do
autor, seja por grandes heróis,
seja por graves transformações
infraestruturais.
Considerada de maneira não
preconceituosa, a micro-história encontra seu primeiro
grande exemplo na análise da
duplicidade do comportamento religioso dos chamados nicodemistas -aqueles que, convertendo-se à Reforma, continuavam a participar das cerimônias da igreja de Roma.
Foi realizada por Carlo Ginzburg em "Il Nicodemismo - Simulazione e Dissimulazione
Religiosa nell'Europa del 500"
(O Nicodemismo - Simulação e
Dissimulação Religiosa na Europa do Quinhentos, 1970).
Sua peça mais conhecida é,
entretanto, "O Queijo e os Vermes" (1976), do mesmo autor
[no Brasil, pela Cia. das Letras].
Para a localização do leitor
não especializado, vale considerar que o surgimento da micro-história é uma das consequências do questionamento
da escrita da história, realizado
sobretudo na década de 1970.
Essa década, bastante fecunda para o redirecionamento
das ciências sociais, se caraterizou, do ponto de vista dessas,
pela crítica acerba do positivismo ainda vigente -como vigente ainda permanece-, com
sua ênfase na factualidade, no
empirismo da análise, no primado de pressupostos teóricos
não questionados, assim como
pela discussão do papel da narrativa, na escrita da história.
Narrativa literária
Tal questionamento ainda se
articulava com a fecundidade
então alcançada pelos estudos
teórico-literários.
Daí a transversalidade de
questões como a da própria
narrativa. Se a narrativa é um
recurso frequente na escrita da
história e na ficção romanesca,
seria correto manter-se a distinção entre elas?
Além do mais, como a narrativa se impõe nas reportagens
jornalísticas e televisivas, por
que essas não teriam a "dignidade" acadêmica reservada à
história e aos gêneros literários? Tais perguntas se tornavam particularmente sérias
porque se referiam a áreas que
sempre haviam desdenhado a
indagação teórica.
Daí derivavam renhidos antagonismos.
Assim, um dos principais representantes da micro-história, o já citado Carlo Ginzburg,
se tornaria um ardoroso adversário de Hayden White porque,
em sua "Meta-História"
[Edusp], o ensaísta norte-americano advogava uma proximidade entre narrativa literária e
historiográfica, simplesmente
intolerável a um discípulo de
Arnaldo Momigliano [1908-87], como Ginzburg.
Ora, a leitura de "O Crime do
Restaurante Chinês" será um
instrumento indispensável para o leitor que se levante essas
questões.
A micro-história não é um
gênero ficcional porque não sai
do círculo do documentado.
Não é que as conclusões estejam documentadas (!) -o que
tornaria a pesquisa ociosa-,
mas sim que só se baseiam em
elementos inferidos a partir de
documentos.
A ficção pode bem partir da
mesma massa documental,
sem por isso estar obrigada a
segui-la fielmente.
Um bom exemplo seria "A
Sangue Frio" (1966), de Truman Capote [Cia. das Letras].
Já a reportagem, porque se supõe manter fiel aos fatos sucedidos, sem deixar de recorrer a
recursos ficcionais (sobretudo
de ordem sensacionalista), é, ao
menos para alguns de seus defensores, a "prova" de que a separação entre escrita da história e ficção não passaria de uma
"ficção" acadêmica.
Além do folclore
O espaço de que disponho
não me permite mais do que
apontar o problema.
Tenho a meu favor a qualidade do livro que resenho: ele demonstra que um exercício de
micro-história não precisa se
confundir com um documentalismo estéril ou folclórico; que,
na verdade, os eventos históricos são grandes ou pequenos
menos em razão de si mesmos
do que da excepcionalidade ou
da mediocridade dos que os
examinam.
Neste sentido, a própria articulação indicada pelo subtítulo
do livro, entre futebol, Carnaval e Justiça, depende muito
menos da coincidência do crime com o Carnaval e as proximidades da Copa do Mundo de
1938 do que da capacidade do
autor em relacioná-los.
Mas não basta assinalá-lo.
Será ainda preciso chamar a
atenção para o fato de que a micro-história não é apenas uma
via daquilo que, vindo do particular, terminaria por reiterar
os resultados passíveis de serem atingidos pela macro-história. Quando assim sucede a
concordância apenas confirma
algum clichê a ser compartilhado por historiadores e leitores.
É bem o contrário que ocorre
no caso presente.
Boris Fausto ressalta que a
absolvição do acusado da chacina sucedida em um modesto
restaurante chinês, em março
de 1938, evidencia que "a circunstância da pobreza se converte em traço de simpatia aos
olhos da opinião pública", sem
que, por isso, as reiteradas alusões à cor do acusado deixem
de confirmar o racismo presente em toda a circunstância.
Da mesma maneira, ante o
caráter duvidoso das provas incriminatórias, "um corpo de jurados constituído por gente da
elite paulistana e juízes togados" decide em favor do réu,
quando a suposição usual seria
de que sucedesse o contrário.
Que isso significa senão que a
escrita da história é bem mais
imprevisível do que pretendem
os clichês acerca das ciências
ditas "duras"?
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
O CRIME DO RESTAURANTE
CHINÊS
Autor: Boris Fausto
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 45 (264 págs.)
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