São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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A encruzilhada da fé

Reuters - 26.abr.2000
Bispos e padres vestem capas para se proteger da chuva durante comemoraç ão dos 500 anos da primeira missa no Brasil, em Porto Seguro (BA)



PONTIFICADO DE JOÃO PAULO 2º ACELEROU TENDÊNCIA HISTÓRICA DE QUEDA NO NÚMERO DE CATÓLICOS NO BRASIL, EMBORA EVANGÉLICOS TENHAM CRESCIDO MENOS DO QUE O ESPERADO


por Antônio Flávio Pierucci

O catolicismo no Brasil está diminuindo de tamanho. É o que mostra o censo brasileiro do ano 2000 (leia quadro na página 6). Ora, direis, que novidade essa... Mais exato seria dizer que o dado censitário mostra isso mais uma vez, como aliás tem feito sempre, compassando a intervalos regulares de dez anos um declínio que é constante, persistente e que, por mal dos pecados, a despeito de todos os esforços em contrário das autoridades eclesiásticas e de uma sempre rejuvenescida militância católica, parece impor-se ao catolicismo brasileiro feito um fado: inexorável.
Mas não é justamente essa a ineludível sina das religiões tradicionais majoritárias em qualquer parte do mundo, uma fatalidade sociocultural quase tão implacável quanto a genética dos caranguejos?
Nas sociedades pós-tradicionais, "et pour cause", decaem as filiações tradicionais. Os indivíduos tendem nessas formações sociais a se desencaixar de seus antigos laços, por mais confortáveis que antes pudessem parecer. Desencadeia-se nelas um processo de desfiliação em que as pertenças sociais e culturais dos indivíduos, inclusive as religiosas, tornam-se opcionais e, mais que isso, revisáveis; e os vínculos, quase só experimentais. Sofrem fatalmente com isso, claro, as religiões tradicionais. E, uma vez que foi deletada de nosso mapa cultural a religiosidade indígena, o catolicismo no Brasil é a religião mais antiga, a grande religião tradicional que um dia foi oficial. Logo...
Desde seus inícios mais remotos, nos anos 50 e 60 do século 20, a sociologia da religião praticada no Brasil foi sempre uma sociologia do catolicismo em declínio. Em nosso país e na América Latina como um todo, mesmo os estudos sociológicos sobre as religiões não-católicas, ao enfocarem a expansão quantitativa ou qualitativa de uma outra religião, seja ela qual for, estarão sempre fazendo -pelo avesso- uma sociologia do declínio do catolicismo.
Isso é inevitável. Desde que me conheço por sociólogo -e de saída fui ser sociólogo da religião no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) da rua Bahia, onde entrei em 1971- é exatamente isso que tem sido feito e dito, sem rodeios nem exclamações, pela sociologia brasileira da religião, calçada tanto em dados censitários quanto em macroteorias sociológicas de amplo consenso entre os pares, aquelas que os críticos pós-modernos chamaram de "grandes narrativas".

Novela interminável
Logo que comecei a praticar sociologia, especializando-me já então em sociologia da religião, o que aprendi de meus mestres e colegas no Cebrap foi que o exame dos censos brasileiros de 1940, 50 e 60 -a despeito das limitações inerentes ao tipo de informação que um Censo Demográfico costuma apresentar, como por exemplo a impossibilidade de resposta múltipla, o que de cara exclui os sincretismos todos e as duplas filiações- "revela(va) a tendência geral para um declínio moderado, mas constante, de adeptos da Igreja Católica"; e os protestantes, liderados pelos pentecostais, mas também todos os espíritas e (vale notar!) os que se declaravam "sem religião", eram apontados como os principais "beneficiários desse processo de transição religiosa". Trinta anos depois, com exceção da umbanda, que para a surpresa geral está encolhendo em número de adeptos pelo Censo 2000, as tendências registradas no início dos anos 70 pela equipe do Cebrap liderada por Cândido Procópio Ferreira de Camargo estão sendo confirmadas mais uma vez, parece incrível, pelo último Censo Demográfico. "More of the same", portanto: o catolicismo em declínio, os pentecostais e os sem-religião em ascensão. A diferença agora é que essas tendências se desenham de forma bem mais carregada. Mais um capítulo, apenas mais agitado, dessa interminável novela que dura mais de 60 anos, mas não ainda o capítulo decisivo, ainda não. Para frustração de todos os que esperavam lances mais emocionantes, a nova cara religiosa do país ainda não veio à luz, a grande mutação cultural alardeada ainda não se consumou, embora continue objetivamente prometida pela sequência dos dados, pela constância das tendências, pelas projeções mais conservadoras. Por enquanto o que o censo diz é que o Brasil continua mudando nos conteúdos de sua cultura, continua se destradicionalizando em termos religiosos, mas adentra o novo século com 125 milhões de católicos declarados entre 170 milhões de habitantes. É católico que não acaba mais -sou tentado a dizer. Três quartos da população: olhado isoladamente, fora da linha declinante de sua evolução histórica, esse dado irrompe agora nas manchetes dos jornais com inusitado impacto afirmativo, pois mesmo os observadores mais atentos esperavam número bem menor de católicos. Chegaram a rolar, em certos círculos de estudiosos, algumas especulações (agora demonstradamente exageradas) que davam como praticamente certo um rombo tão acentuado na proporção de católicos em nosso país que os teria reduzido a perto da metade dos brasileiros. Era só aguardar o Censo 2000 para constatar a virada. Na verdade, isso quase aconteceu para dois Estados da Federação, Rio de Janeiro e Rondônia, nos quais os católicos beiram hoje a metade dos habitantes (57%). Mas não para o Brasil como um todo. O problema dos católicos, no entanto, está em que sua participação no total da população brasileira já foi muito maior -eis-me de novo tematizando o declínio. Houve um longo, longo tempo, e não muito antigamente, em que eram católicos mais de nove entre dez brasileiros, conforme nos mostra a série histórica dos Censos Demográficos: em 1940, eram 95,2%; em 1950, 93,7%; em 1960, 93,1%; em 1970, 91,1%, em 1980, 89,2%; em 1991 (e aqui o ritmo das perdas relativas já se mostrava mais acelerado) passaram para 83,8%, caindo finalmente para 73,8% no ano 2000 (os tais três quartos).

Os "desencaixados"
Tomados em conjunto, os evangélicos, categoria que no Censo 2000 engloba as igrejas do protestantismo histórico mais as pentecostais e neopentecostais, tiveram taxas de crescimento nos últimos 20 anos elevadíssimas, chegando porém só agora à casa dos 15% para todo o Brasil. Também nesse caso se viram frustradas as expectativas dos observadores externos ao campo: dada a extrema visibilidade e a penetrante vocalidade dos evangélicos na cena brasileira atual, esperava-se muito mais. Foi sobretudo nos anos 90 que os evangélicos mostraram um crescimento em tudo e por tudo extraordinário, crescendo a uma taxa de quase 100% no intervalo de uma década, e não apenas de 70%, como veicularam erradamente alguns jornais, uma vez que eles praticamente dobraram de tamanho em números absolutos, saltando de 13,3 milhões para 26,1 milhões, crianças inclusas.
E, tal como os evangélicos, foi nas duas últimas décadas que o grupo dos "sem-religião" passou a apresentar suas maiores taxas de crescimento. Até 1980 eles eram uma categoria insignificante, pouco mais de 1% dos brasileiros, mas daí em diante passaram a proliferar num ritmo de fazer inveja a qualquer grupo declaradamente religioso. Atualmente participam com 7,3% de nossa população. Isso quer dizer, olhando a coisa pelo avesso, que, depois dos


DE QUE TERÁ ADIANTADO ENTÃO FREAR A IGREJA PROGRESSISTA, FERIR DE MORTE A ESQUERDA CATÓLICA E SUFOCAR A "IGREJA POPULAR" DOS ANOS 70?


católicos e junto com eles, o grupo dos "com-religião" aos poucos começa a se desfalcar em nosso país. A par de uma oferta religiosa mais diversificada, estamos vendo formar-se nessa antiga Terra de Santa Cruz um contingente cada vez mais numeroso de "desencaixados" de qualquer religião, "desfiliados" de toda instituição religiosa, "desligados" de toda e qualquer autoridade religiosamente constituída. Se crescem os "sem-religião", é óbvio que as religiões em conjunto estão perdendo seguidores no Brasil atual. E, quando eles crescem muito, como agora, dá para ver que a Igreja Católica mais uma vez é a mais atingida nesse processo, segundo indicam os dados para o Estado do Rio: aí não foi só o crescimento dos evangélicos mas também a inédita escalada dos "sem-religião" a um patamar de 15,5% da população, que fizeram a taxa de católicos despencar para seu ponto mais baixo entre os Estados brasileiros: 57,2%.

Ocaso a passos largos
O ocaso anunciado, mas sempre adiado, da histórica posição de religião majoritária está se aproximando do catolicismo brasileiro a passos largos. Além do Rio de Janeiro, também no Estado de Rondônia os católicos estão reduzidos a 57,6% e, em Roraima e Goiás, a pouco mais de 60%. Em todos esses Estados, mais o Espírito Santo, Amazonas, Acre e Tocantins, as perdas católicas da última década foram grandes, para não dizer fragorosas.
O que se nota, então, é que a aceleração da queda católica nas estatísticas de adesão religiosa em nosso país é um evento das duas últimas décadas. Particularmente dos anos 90. Fica por isso impossível dissociar do pontificado de João Paulo 2º esse aprofundamento das perdas, essa intensificação do esboroamento numérico do catolicismo no Brasil. De que terá adiantado então, me pergunto, frear a igreja progressista, ferir de morte a esquerda católica e sufocar a "igreja popular" dos anos 70? Que vantagem Maria levou?
Dia desses eu li que nos últimos 20 anos o papa João Paulo 2º beatificou mais de 900 virtuosos e canonizou quase 300. Só posso então concluir que, se o mui conservador pontificado de Karol Wojtila pode ter aumentado o número de santos sobre os altares, pode também ter ajudado a apressar a queda do número de católicos no maior país católico desta nossa barroquíssima "América católica". Santa madre Paulina, rogai por ele!

Antônio Flávio Pierucci é professor do departamento de sociologia da USP e autor de, entre outros, "A Magia" (Publifolha) e "Ciladas da Diferença" (editora 34).


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