São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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O ecossistema do Paraíso


ESTUDIOSO DA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E EDITOR DA "ATLANTIC MONTHLY", TOBY LESTER DISCUTE AS NOVAS FORMAS DA FÉ E COMENTA A EXPLOSÃO DA "TEODIVERSIDADE" NAS SOCIEDADES MODERNAS


Caio Caramico Soares
da Redação

Assim na terra como no céu. Se as espécies biológicas nascem, crescem e morrem conforme se adaptam mais ou menos ao seu hábitat natural, a mesma lógica pode ser aplicada às diferentes religiões, em sua multissecular concorrência para "povoar" almas necessitadas de crenças. Daí a justeza de falar, segundo Toby Lester, em "teodiversidade". Editor sênior da prestigiada revista norte-americana "Atlantic Monthly" -onde acaba de publicar ampla pesquisa sobre o assunto-, Lester afirma, na entrevista a seguir, que a situação da religião no novo milênio é bem distinta do que diriam as profecias cientificistas da virada do século 20. Ao invés de desaparecer sob o triunfo da "razão", a fé volta à tona sob tons e matizes os mais diversos.
Segundo a "World Christian Encyclopedia" (ed. Oxford), são quase 10 mil as religiões hoje em todo o mundo. E elas não param de crescer: a cada dia surgiriam, em média, mais duas ou três. E a "criatividade" dos credos em oferta nesse mercado é quase infinita: há desde movimentos neopentecostais até o culto a discos voadores (leia quadro na página ao lado). Buscando captar e traduzir a autêntica mensagem divina -supostamente distorcida e fossilizada pelas grandes religiões-, tais grupos atraem jovens de inclinação "espiritual", mas pouco afeitos a imposições moralistas ou pregações muito rígidas. Daí o apelo a binóculos que façam ver Buda, Jesus e os orixás sobre um mesmo olimpo.
Além de fascínio, esses "novos movimentos religiosos" (NMRs), como dizem os sociólogos, também despertam temor: desde o atentado ao metrô de Tóquio, cometido pela seita Aum Shinrikyo (Verdade Suprema) em 1995, autoridades do FBI (polícia federal dos EUA) e da Scotland Yard (polícia britânica), entre outras, monitoram constantemente os passos de grupos suspeitos de "fanatismo" e de "aversão" ao mundo civilizado, acusações não por acaso dirigidas também a Osama bin Laden e a sua rede terrorista, a Al Qaeda.
Lester também diz que o catolicismo não está em decadência, mas em transição, da qual um (bom) sinal seria o que ele vê como tendência de "abertura" da Igreja Católica a táticas -como o uso maciço da mídia- típicas de seus concorrentes menos tradicionais.
O que significa "teodiversidade"? Ao cunhar esse termo eu tentei traçar um paralelo com a noção de "biodiversidade" e tudo o que ela implica. Tentei chamar a atenção para a magnitude chocante que a diversidade religiosa assumiu no mundo atual. E -como se dá com a biodiversidade- a própria existência da diversidade e a competição que ela engendra significam que há um tipo de ciclo darwiniano de nascimento, mutação, evolução e morte ocorrendo constantemente no mundo religioso, o que permite às novas formas de religião se adaptarem rapidamente a realidades sociais em transformação.
muito rígidas. Daí o apelo a binóculos que façam ver Buda, Jesus e os orixás sobre um mesmo olimpo.
Além de fascínio, esses "novos movimentos religiosos" (NMRs), como dizem os sociólogos, também despertam temor: desde o atentado ao metrô de Tóquio, cometido pela seita Aum Shinrikyo (Verdade Suprema) em 1995, autoridades do FBI (polícia federal dos EUA) e da Scotland Yard (polícia britânica), entre outras, monitoram constantemente os passos de grupos suspeitos de "fanatismo" e de "aversão" ao mundo civilizado, acusações não por acaso dirigidas também a Osama bin Laden e a sua rede terrorista, a Al Qaeda.
Lester também diz que o catolicismo não está em decadência, mas em transição, da qual um (bom) sinal seria o que ele vê como tendência de "abertura" da Igreja Católica a táticas -como o uso maciço da mídia- típicas de seus concorrentes menos tradicionais. O que significa "teodiversidade"? Ao cunhar esse termo eu tentei traçar um paralelo com a noção de "biodiversidade" e tudo o que ela implica. Tentei chamar a atenção para a magnitude chocante que a diversidade religiosa assumiu no mundo atual. E -como se dá com a biodiversidade- a própria existência da diversidade e a competição que ela engendra significam que há um tipo de ciclo darwiniano de nascimento, mutação, evolução e morte ocorrendo constantemente no mundo religioso, o que permite às novas formas de religião se adaptarem rapidamente a realidades sociais em transformação.
Quais são os traços básicos em comum entre os "novos movimentos religiosos"?
Bem, eles nunca emergem do nada -eles tendem a representar mudanças sociais e espirituais que são ainda subterrâneas na sociedade e às quais movimentos religiosos maiores e mais "vagarosos" não podem responder rápida e diretamente. Uma segunda característica desses novos movimentos é que eles operam num nível alto de tensão com a sociedade, podendo, porém, ser rapidamente integrados e considerados "ortodoxos". Ao contrário do que geralmente se pensa, os adeptos dos NMRs são, na média, jovens, bem-educados e relativamente bem situados na sociedade. As razões para eles se converterem são mais sociais do que teológicas: eles vão porque amigos ou parentes foram primeiro. É importante notar que a maioria desses recém-convertidos logo saem, por livre vontade. A suspeita de que se trata de "lavagens cerebrais" é, em geral, infundada.
Há diferença entre esses NMRs nos países ricos e subdesenvolvidos?
Claro. A principal diferença talvez seja que, nos países ricos, essas religiões atraem porque as pessoas estão insatisfeitas com a "decadência" da prosperidade, enquanto nos países pobres elas atraem pessoas que delas esperam uma infra-estrutura social e espiritual que as ajude a sobreviver no dia-a-dia.
Como o sr. explica esse "revival" do sentimento religioso no presente? Pensadores como Max Weber estavam errados ao predizer o gradual esvaziamento da religião na modernidade?
Muitos dos acadêmicos que consultei não crêem num "revival". Para eles, o que existe é um constante vaivém entre diferentes arenas religiosas. Por isso é difícil endossar a tese de Weber e de outros sociólogos, segundo a qual a religião definharia na sociedade moderna. Mas, e isso dá algum crédito a essa tese, é verdade que, para muitas pessoas em todo o mundo, a religião já não provê uma visão total do mundo. Em vez disso, transformou-se numa espécie de estilo de vida que se pode assumir e descartar à vontade.
O extremismo islâmico seria um exemplo de NMR?
Certamente. Quase todos os NMRs professam um "retorno às bases" de um credo ou de outro, extirpando os problemas e excessos que se teriam acumulado ao longo do tempo. Os extremistas islâmicos não fogem à regra. É muito interessante considerar a Al Qaeda como um NMR. Seus membros também são frequentemente jovens, bem-educados e prósperos -pense nos sauditas envolvidos nos ataques de 11 de setembro, sem falar no próprio Bin Laden. Observando as coisas assim, nós evitamos pensar que a Al Qaeda não passa de uma consequência inevitável do islã, que abriga tanta variedade e divergências internas quanto qualquer outra religião.
O sr. conhece algum NMR no Brasil?
Certamente a umbanda e o candomblé se encaixam nessa categoria, especialmente pelo modo como eles fundem elementos de diversos credos e tradições.
Como a crescente teodiversidade deverá afetar o panorama religioso na América Latina e no Brasil no século 21?
Como dizem os acadêmicos com quem conversei, o centro de gravidade do mundo cristão está se mudando para o Sul, da Europa e EUA à África e América do Sul. Imagino que as formas brasileiras de cristianismo se tornarão cada vez mais determinantes para a prática religiosa em todo o mundo. Poderemos ver logo uma reversão nos padrões atuais da evangelização -ao invés de missionários do Norte viajando para o Sul para divulgar as Escrituras, o movimento será o oposto: missionários do Sul viajando para o Norte para tentar converter as populações cada vez mais secularizadas dessa região.
Como poderiam as religiões tradicionais reagir aos NMRs?
A reação mais sensata, para mim, seria não demonizá-los, e sim compreender o que o sucesso deles significa, sem deixar de prestar atenção aos problemas deles. E acho que é essa a tática que o Vaticano vem adotando. Em documento recente, o Vaticano se refere a esses NMRs nos seguintes termos: "O dinamismo de seu impulso missionário, a responsabilidade evangélica imputada aos novos "convertidos", o uso da mídia, o senso dos objetivos a alcançar deveriam fazer-nos pensar em como tornar mais dinâmica a atividade missionária da igreja". É muito surpreendente um discurso como esse por parte do Vaticano.
É possível dizer que o catolicismo está à beira do colapso?
E o cristianismo em geral?
A resposta é não, nos dois casos. Um dos fatores que sustentaram o cristianismo ao longo dos séculos foi justamente a sua habilidade em observar e aprender com esses NMRs.
Como o sr. avalia o pontificado de João Paulo 2º?
O que destacaria no papa é seu endosso a essa abordagem relativamente liberal que a Igreja Católica tem conferido à questão dos NMRs.



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