São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

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+Arte

Olhar e ser visto


Laura Cumming escreve sobre quadros como se estivessem vivos: o olhar fixo de Tintoretto é "um gancho tão forte que você não consegue se afastar de imediato"

JACKIE WULLSCHLAGER

De lados opostos de uma sala cheia de pessoas, nossos olhos se encontram. Pode ser amor à primeira vista ou pode ser que não nos suportemos. O olhar pode ser demasiado hesitante, vazio ou inamistoso, e nós nos afastarmos para sempre. É isso o que acontece, argumenta Laura Cumming num estudo vivaz, maravilhosamente ilustrado ["A Face to the World", Uma Face Para o Mundo, Harper Press, 280 págs., 30, R$ 96], na primeira vez em que topamos com um autorretrato.
Entre os olhares que nos seguem em nossa trajetória por uma galeria de arte, os olhares dos autorretratos "têm a aparência especial de olharem. (...) O olhar é atento, buscando você ativamente no meio da multidão. A analogia mais próxima talvez seja com a própria vida:
pinturas que se comportam como pessoas".
A coisa mais fascinante no livro é que Cumming, crítica de arte do "Observer", escreve sobre quadros como se estivessem vivos. O olhar fixo de Tintoretto, com seus olhos escuros, é "um gancho tão forte que você não consegue se afastar de imediato". Os autorretratos em série de Rembrandt e Warhol mudam de forma, convencendo-nos de que "possuir múltiplas personalidades é a condição humana".
Ela começa com a célebre pergunta de Degas: "Fomos criados para olhar uns para os outros, não fomos?". Diariamente apresentamos "alguma espécie de rosto ao mundo", rosto que pode ser uma ficção, mas que carrega sua própria verdade sobre como esperamos ser vistos.
Os autorretratos são convincentes porque levam esse jogo até o seu extremo formal e viram a criação de imagens de cabeça para baixo: enquanto o artista se torna seu próprio objeto, o olhar de seu modelo, geralmente voltado para o pintor, se volta para nós, espectadores.
Cumming aponta detalhes pictóricos, iluminando paralelos improváveis e solapando expectativas históricas. Seu Sassoferrato, do século 17, "se inclina para frente com candura extraordinária, aberto a ser visto, com a atração imediata de sua pose própria para a era da câmera", enquanto o romântico Delacroix emerge como mestre da contenção.

Suspensão do tempo
O livro faz um percurso pelo mundo de superfícies e reflexos brilhantes da pintura flamenga.
Após longa disputa, o "Retrato de um Homem" (1433), de Jan van Eyck, que está na National Gallery [em Londres], recentemente foi aceito como o primeiro autorretrato renascentista. Cumming amplia a discussão, descobrindo repetições dessa figura em toda parte na obra de Van Eyck.
O que prende a atenção de Cumming é sobretudo a capacidade que tem a pintura, assim como a ficção, de suspender o tempo. Ela vê "As Meninas", de Velázquez, não como meditação sobre a arte e a consciência, mas como um romance: o autorretrato carrega dentro dele a espinha dorsal dos ciclos de conexões e recuos, que concede mistério, graça e, especialmente, o poder de consolo terreno.
Pois, embora essas crianças douradas em roupas obsoletas sejam seculares, dolorosamente tristes, mortas antes do tempo, "as figuras do passado não param de olhar para nosso momento, nosso presente, enquanto nós continuamos a olhar de volta para elas. Continuamos a viver nos olhos uns dos outros, e nossas histórias não precisam terminar nunca".


Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.


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