São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

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Diante de Kafka

PRINCIPAL TRADUTOR BRASILEIRO DO AUTOR TCHECO, MODESTO CARONE LANÇA LIVRO DE ENSAIOS SOBRE SUA OBRA E DIZ QUE ESTILO KAFKIANO USA LINGUAGEM BUROCRÁTICA COMO RECURSO DE VANGUARDA

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Não era um sonho", garante o narrador, quando Gregor Samsa acorda, certa manhã, metamorfoseado num inseto monstruoso. Foi assim, sem abdicar completamente do registro realista e fazendo uso da linguagem dos burocratas, que Franz Kafka (1883-1924) se tornou vanguardista, "mas de uma vanguarda que não dá bandeira".
Quem afirma é o escritor Modesto Carone, 72, há mais de duas décadas o principal tradutor de seus textos no Brasil e também um de seus mais importantes intérpretes.
Na reta final do trabalho de tradução de toda a obra kafkiana, Carone publica, no final deste mês, uma reunião de ensaios sobre o autor tcheco ("Lição de Kafka", Companhia das Letras, 144 págs., R$ 29,50).
Na entrevista a seguir, ele diz que verter Kafka para o português se tornou um "compromisso pessoal" e explica as escolhas formais do escritor.

 

FOLHA - Como o sr. encontrou Kafka? O sr. se lembra de sua primeira leitura?
MODESTO CARONE
- Foi quando eu estudava letras anglo-germânicas na USP, na rua Maria Antonia, e apareceu um professor vienense muito jovem que tinha um método pessoal de ensinar a língua alemã. Em vez de estudarmos estrutura gramatical diretamente, daquela forma árida, ele se valia de textos de autores do seu agrado, mas de fácil inteligibilidade.
Por meio da explicação do texto, ele começava a ensinar as formas gramaticais alemãs. O primeiro texto que deu foi exatamente "Diante da Lei", do Kafka. Fiquei extasiado ao descobrir que dava para entender o que ele havia escrito em alemão, embora eu conhecesse Kafka desde estudante. Lá pelos 18 anos, eu li "A Metamorfose" e passei a noite em claro.
Mas foi só na faculdade que fui descobrir como ele era como escritor em língua alemã.
Em 1983, aí na Folha, fui convidado, entre outros autores, para escrever sobre Kafka.
Acabei também traduzindo vários trechos curtos. Vi então que era possível traduzi-lo. Você veja: comecei em 1983. De lá até agora, eu não parei mais.
Tornou-se uma espécie de compromisso pessoal. Porque eu gostava muito dele, porque sua obra era fascinante, mas também porque as traduções de Kafka que tínhamos no Brasil eram uma calamidade.
Eram traduções de segunda mão, com erros clamorosos.

FOLHA - No que elas pecavam?
CARONE
- Para dar um exemplo, em "O Castelo", o personagem principal, K., sai do albergue, olha para cima e admira a construção, em meio a uma paisagem coberta de neve. Ele vê, então, um bando de gralhas em torno das torres do castelo.
Traduziram por "um enxame de urubus". Aí não dá [risos].
Pensei: o Kafka merece um tratamento melhor, vou começar a traduzi-lo com a maior cautela possível.

FOLHA - O sr. considera o trabalho concluído?
CARONE
- Devo traduzir as cartas de Kafka à sua noiva, Felice, um verdadeiro romance. São 700 páginas -ele escrevia várias cartas por dia. Um noivado duas vezes firmado e duas vezes rompido, por ele. Kafka achava que não era possível aliar a literatura à vida conjugal. No entanto, o que mais desejava era ter uma família.
Fora isso, só não traduzi aqueles textos que são pré-kafkianos. Obras em que ele ainda era apenas um bom escritor, mas não o grande autor que começa justamente com o conto "O Veredicto". Ele tinha então 29 anos, e no mesmo ano produziu "A Metamorfose" e "Na Colônia Penal".

FOLHA - O que faz dele, dali em diante, o Kafka que conhecemos?
CARONE
- Primeiro, a linguagem. Em Praga, que era uma capital de segunda categoria no Império Austro-Húngaro, o alemão usado era o da burocracia, um idioma já bem calcificado. Companheiros literatos de Kafka quiseram fugir disso inventando uma língua artificial, meio barroca, para evitar aquele alemão quase morto.
Kafka fez o contrário. Resolveu usar essa linguagem burocrática como matéria de literatura. Isso determinou uma linguagem própria. Ele tinha uma concepção muito avançada de literatura. Achava que ela deveria doer, que deveria servir como um machado que quebrasse o mar congelado de cada um de nós. Kafka também abdicou do realismo convencional, que para ele reproduzia apenas uma fachada, uma mentira, que escondia o real.

FOLHA - Por que é interessante o uso dessa língua burocrática?
CARONE
- Ela é, em si mesma, absolutamente desinteressante. Mas ele a usou como matéria literária para descrever o mundo alienado em que vivemos, como era essa língua. Além disso, inventou um narrador que não é mais onisciente, mas insciente; ele não sabe. Como ele, também o personagem e o leitor não sabem. Todos são pegos pela alienação, mas saímos do outro lado com uma experiência concreta do que é.

FOLHA - Naquela leitura, aos 18, o que o impressionou?
CARONE
- Logo a primeira frase, sobre Gregor Samsa acordando metamorfoseado "num inseto monstruoso". E em seguida, Kafka escreve: "Não era um sonho". Quem narra a história não é o inseto, porque senão seria uma série de ruídos ininteligíveis. É um "ele" que fala como um "eu", uma narrativa em terceira pessoa. A metamorfose, núcleo da história, está fora da novela. É um texto que começa depois de já ter acontecido.
Kafka, então, é um escritor de vanguarda, mas de uma vanguarda que não dá bandeira.
Ele mostrava as coisas da maneira como pareciam ser e não eram. É um escritor da não-aparência. É uma dialética negativa porque não tem síntese, Kafka não dá solução.
Do contrário, você resolveria os problemas do mundo, que não estão resolvidos. Como diz [o filósofo alemão Theodor] Adorno, se Kafka parece metafísico, a culpa não é sua, mas da realidade de onde a obra surgiu.

FOLHA - Qual é a ligação entre a obra e a época em que Kafka vivia?
CARONE
- Ele começa a escrever em 1912. E previu muita coisa. O nazismo aparece, de certa forma, na sua obra. Em "Na Colônia Penal", há lá aquela máquina terrível em que o condenado, tendo sido deitado numa espécie de cama, tem a sentença riscada na pele por um colchão de agulhas.


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