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Diante de Kafka
PRINCIPAL TRADUTOR BRASILEIRO DO AUTOR TCHECO, MODESTO CARONE LANÇA LIVRO DE ENSAIOS SOBRE SUA OBRA E DIZ QUE ESTILO KAFKIANO USA LINGUAGEM BUROCRÁTICA COMO RECURSO DE VANGUARDA
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Não era um sonho",
garante o narrador, quando Gregor Samsa acorda,
certa manhã, metamorfoseado num inseto
monstruoso. Foi assim, sem
abdicar completamente do registro realista e fazendo uso da
linguagem dos burocratas, que
Franz Kafka (1883-1924) se
tornou vanguardista, "mas de
uma vanguarda que não dá
bandeira".
Quem afirma é o escritor
Modesto Carone, 72, há mais
de duas décadas o principal tradutor de seus textos no Brasil e
também um de seus mais importantes intérpretes.
Na reta final do trabalho de
tradução de toda a obra kafkiana, Carone publica, no final
deste mês, uma reunião de ensaios sobre o autor tcheco ("Lição de Kafka", Companhia das
Letras, 144 págs., R$ 29,50).
Na entrevista a seguir, ele diz
que verter Kafka para o português se tornou um "compromisso pessoal" e explica as escolhas formais do escritor.
FOLHA - Como o sr. encontrou Kafka? O sr. se lembra de sua primeira
leitura?
MODESTO CARONE - Foi quando
eu estudava letras anglo-germânicas na USP, na rua Maria
Antonia, e apareceu um professor vienense muito jovem que
tinha um método pessoal de
ensinar a língua alemã. Em vez
de estudarmos estrutura gramatical diretamente, daquela
forma árida, ele se valia de textos de autores do seu agrado,
mas de fácil inteligibilidade.
Por meio da explicação do
texto, ele começava a ensinar as
formas gramaticais alemãs. O
primeiro texto que deu foi exatamente "Diante da Lei", do
Kafka. Fiquei extasiado ao descobrir que dava para entender o
que ele havia escrito em alemão, embora eu conhecesse
Kafka desde estudante. Lá pelos 18 anos, eu li "A Metamorfose" e passei a noite em claro.
Mas foi só na faculdade que
fui descobrir como ele era como escritor em língua alemã.
Em 1983, aí na Folha, fui
convidado, entre outros autores, para escrever sobre Kafka.
Acabei também traduzindo vários trechos curtos. Vi então
que era possível traduzi-lo. Você veja: comecei em 1983. De lá
até agora, eu não parei mais.
Tornou-se uma espécie de
compromisso pessoal. Porque
eu gostava muito dele, porque
sua obra era fascinante, mas
também porque as traduções
de Kafka que tínhamos no Brasil eram uma calamidade.
Eram traduções de segunda
mão, com erros clamorosos.
FOLHA - No que elas pecavam?
CARONE - Para dar um exemplo, em "O Castelo", o personagem principal, K., sai do albergue, olha para cima e admira a
construção, em meio a uma
paisagem coberta de neve. Ele
vê, então, um bando de gralhas
em torno das torres do castelo.
Traduziram por "um enxame
de urubus". Aí não dá [risos].
Pensei: o Kafka merece um tratamento melhor, vou começar
a traduzi-lo com a maior cautela possível.
FOLHA - O sr. considera o trabalho
concluído?
CARONE - Devo traduzir as cartas de Kafka à sua noiva, Felice,
um verdadeiro romance. São
700 páginas -ele escrevia várias cartas por dia. Um noivado
duas vezes firmado e duas vezes rompido, por ele. Kafka
achava que não era possível
aliar a literatura à vida conjugal. No entanto, o que mais desejava era ter uma família.
Fora isso, só não traduzi
aqueles textos que são pré-kafkianos. Obras em que ele ainda
era apenas um bom escritor,
mas não o grande autor que começa justamente com o conto
"O Veredicto". Ele tinha então
29 anos, e no mesmo ano produziu "A Metamorfose" e "Na
Colônia Penal".
FOLHA - O que faz dele, dali em
diante, o Kafka que conhecemos?
CARONE - Primeiro, a linguagem. Em Praga, que era uma capital de segunda categoria no
Império Austro-Húngaro, o
alemão usado era o da burocracia, um idioma já bem calcificado. Companheiros literatos de
Kafka quiseram fugir disso inventando uma língua artificial,
meio barroca, para evitar aquele alemão quase morto.
Kafka fez o contrário. Resolveu usar essa linguagem burocrática como matéria de literatura. Isso determinou uma linguagem própria. Ele tinha uma
concepção muito avançada de
literatura. Achava que ela deveria doer, que deveria servir como um machado que quebrasse
o mar congelado de cada um de
nós. Kafka também abdicou do
realismo convencional, que para ele reproduzia apenas uma
fachada, uma mentira, que escondia o real.
FOLHA - Por que é interessante o
uso dessa língua burocrática?
CARONE - Ela é, em si mesma,
absolutamente desinteressante. Mas ele a usou como matéria
literária para descrever o mundo alienado em que vivemos,
como era essa língua. Além disso, inventou um narrador que
não é mais onisciente, mas insciente; ele não sabe. Como ele,
também o personagem e o leitor não sabem. Todos são pegos
pela alienação, mas saímos do
outro lado com uma experiência concreta do que é.
FOLHA - Naquela leitura, aos 18, o
que o impressionou?
CARONE - Logo a primeira frase,
sobre Gregor Samsa acordando
metamorfoseado "num inseto
monstruoso". E em seguida,
Kafka escreve: "Não era um sonho". Quem narra a história
não é o inseto, porque senão seria uma série de ruídos ininteligíveis. É um "ele" que fala como
um "eu", uma narrativa em terceira pessoa. A metamorfose,
núcleo da história, está fora da
novela. É um texto que começa
depois de já ter acontecido.
Kafka, então, é um escritor
de vanguarda, mas de uma vanguarda que não dá bandeira.
Ele mostrava as coisas da maneira como pareciam ser e não
eram. É um escritor da não-aparência. É uma dialética negativa porque não tem síntese,
Kafka não dá solução.
Do contrário, você resolveria
os problemas do mundo, que
não estão resolvidos. Como diz
[o filósofo alemão Theodor]
Adorno, se Kafka parece metafísico, a culpa não é sua, mas da
realidade de onde a obra surgiu.
FOLHA - Qual é a ligação entre a
obra e a época em que Kafka vivia?
CARONE - Ele começa a escrever em 1912. E previu muita
coisa. O nazismo aparece, de
certa forma, na sua obra. Em
"Na Colônia Penal", há lá aquela máquina terrível em que o
condenado, tendo sido deitado
numa espécie de cama, tem a
sentença riscada na pele por
um colchão de agulhas.
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