São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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SIGNOS EM ROTAÇÃO

Ilustração de Dora Longo Bahia


Popularidade crescente da astrologia entra em choque com premissas da ciência e coloca na ordem do dia discussão sobre seu estatuto hoje

Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Quando a Lua estiver na sétima casa e Júpiter se alinhar com Marte, então a paz guiará os planetas e o amor comandará as estrelas." O prognóstico, cantado em um dos grandes sucessos da música pop dos anos 60, ainda está por se confirmar, mas atesta com segurança a enorme popularidade de que têm gozado, durante as últimas décadas, as previsões baseadas na conjunção dos astros -a astrologia. A canção "Aquarius", principal personagem de "Hair" -a peça e o filme-, é, na verdade, apenas uma das pontas mais visíveis de um fenômeno que se popularizou no século 20 na esteira da expansão dos meios de comunicação. Previsões baseadas no signo zodiacal ou na hora do nascimento, muitas vezes misturados com doutrinas esotéricas e ocultistas, são uma constante hoje na grande imprensa, em revistas especializadas e em programas de TV. Em 1996, um em cada quatro americanos acreditava nas previsões astrais. Na França, terra do racionalismo, um em cada dois franceses se interessa, em graus variados, pela astrologia, diz o sociólogo Michel Maffesoli. Na contramão dessa popularização, seu prestígio entre cientistas, sociólogos e filósofos nunca esteve tão em baixa. Exemplo disso foi a polêmica ocorrida na França e que se estendeu por várias semanas pelas páginas do jornal "Le Monde". O incidente que deflagrou o chamado "affaire Teissier" foi a defesa, em 7 de abril, na Sorbonne, de uma tese de doutorado sobre astrologia, orientada justamente por Maffesoli. O motivo maior da controvérsia residia, porém, na postulante: Elizabeth Teissier, 63, é uma figura intensamente midiática, que foi consultora astrológica de personalidades como o ex-presidente François Miterrand (1981-1995), além de ter criado, em 1975, o primeiro programa de previsão astrológica da TV francesa, o "Astralement Vôtre" (Astralmente Seu). A Associação Francesa de Informação Científica chamou-a de "tolice científica", outros a qualificaram de "impostura" e uma comissão formada por quatro Prêmios Nobel solicitou ao ministro da Educação Jack Lang que simplesmente impedisse a defesa da tese. Advogada ardorosa do ensino do tema na universidade, Teissier foi incisiva durante a defesa: "O determinismo astral deve vir juntar-se ao determinismo psicológico e ao determinismo genético". Ainda que toda a polêmica oculte, em parte, o jogo de poder dentro do autocentrado mundo acadêmico francês, o fato é que a dissertação recolocou na ordem do dia a discussão sobre o estatuto da astrologia na sociedade moderna. Ela é uma ciência, uma crença ou sobretudo um fenômeno sociocultural de vastas implicações? Em entrevista ao Mais!, Michel Maffesoli reivindica a legitimidade do estudo da astrologia: ela "não é uma ciência, mas um fato social e portanto merece ser examinada". Defensor de uma "sociologia compreensiva", voltada para as questões do cotidiano, Maffesoli afirma que a astrologia é "uma manifestação de coesão social que não repousa mais sobre o contrato racional, mas sobre um sentimento de coesão muito mais emocional". Assim como "a música tecno, as tribos homossexuais e o convívio na internet", conclui.

"Revival" astrológico
Na verdade, a longa história das práticas astrológicas, desde seu surgimento na Mesopotâmia no século 23 a.C., é percorrida por controvérsias de toda ordem, como mostra o historiador inglês Peter Burke. Contudo a dimensão dessas controvérsias sofreu uma reviravolta desde o século passado. Sua popularização está ligada diretamente à sua incorporação pela imprensa, a partir de 1930, como explica o professor Mike Harding, do Regent's College, de Londres. A instrumentalização das colunas de previsão astral por outras mídias foi apenas uma questão de tempo. Já nos anos 70, na França, Madame Soleil (Senhora Sol) se tornou uma celebridade nacional ao distribuir conselhos a seus ouvintes baseados no alinhamento dos astros e planetas. No Brasil dos anos 70 e 80, Zora Ionara e Omar Cardoso iriam, com relativo sucesso, estender as previsões astrológicas aos programas de TV. Tornada fenômeno de massa, ela rapidamente passou a despertar o interesse da intelligentsia. É de 1971 o estudo pioneiro coordenado pelo também francês Edgar Morin, "O Retorno dos Astrólogos", em que investiga as razões do crescente interesse que a astrologia estava despertando na sociedade francesa. Morin situava o advento da sociedade industrial e a crise de valores da modernidade como decisivos para a expansão das novas doutrinas esotéricas -em que inclui a astrologia-, a que chamou de Nova Gnose. Contudo, segundo Morin, a expansão brutal dos meios de comunicação de massa fragmentou essas doutrinas a níveis até então inimagináveis. As especulações místicas passaram então a ser instrumentalizadas sobremaneira em favor do aconselhamento ligado às necessidades imediatas das pessoas. Essa função de "tapar buracos" existenciais já havia, de certa forma, sido antevista por Freud 50 anos antes, em seu artigo "Psicanálise e Telepatia". Freud apontava ali o caráter "compensatório" de que estava se revestindo a astrologia na sociedade européia do pós-guerra. A intenção da astrologia, dizia, era "criar noutra esfera, supermundana, as atrações perdidas pela vida sobre esta Terra". Adorno, trilhando o caminho aberto pelo autor de "A Interpretação dos Sonhos", iria juntar a teoria à prática. Por cerca de três meses, o filósofo alemão, então radicado nos EUA, acompanhou a coluna astral do diário "Los Angeles Times", comparando-a com a de publicações especializadas, como "Forecast" e "Astrology Guide". O resultado foi o ensaio "As Estrelas Caem sobre a Terra", um estudo exaustivo publicado originalmente em inglês e ainda inédito no Brasil.

A não-ciência
Os ataques mais virulentos à astrologia partem hoje em dia de cientistas de renome como Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, reunidos em torno da revista "Skeptical Inquirer", ponta-de-lança contra as disciplinas "não-científicas".
O estudo divisor de águas sobre o verdadeiro estatuto da astrologia foi, segundo Dawkins e Jay Gould, um trabalho publicado na revista britânica "Nature", em 1985, por Shawn Carlson, um físico da Universidade da Califórnia. Carlson pretendia testar uma das principais premissas da disciplina: a de que a posição dos astros no momento do nascimento permitiria determinar os traços gerais da personalidade.
Entre outras experiências, o teste consistia em pedir a vários astrólogos, aos quais foi dado um mapa astral de uma determinada pessoa, que a identificassem entre testes de personalidade de três pessoas distintas. O índice de acerto foi de cerca de um terço, o que levou Carlson a concluir cabalmente ao final de seu estudo: "A experiência refuta claramente a hipótese astrológica".
A crítica mais feroz e empenhada ao estudo de Carlson veio de Mike Harding, para quem o trabalho de Carlson apresenta falhas de metodologia "evidentes para qualquer estudante de primeiro ano de psicologia". Outros, como a própria Elizabeth Teissier, alegam que o teste é um índice como outro qualquer, sujeito à subjetividade e particularidade de quem o criou.
À revelia dos ataques, os estudiosos da astrologia têm sabido se servir do principal foco de críticas a seu objeto de estudo: a universidade.
Hoje já há várias instituições superiores dedicadas inteiramente ao estudo da astrologia, como a Faculdade de Estudos Astrológicos, fundada em 1948, em Londres, e a Faculdade Kepler de Artes e Ciências Astrológicas, em Seattle (EUA), uma das mais recentes.
Na Índia, em maio passado, o governo anunciou que pretende criar departamentos de astrologia em todas as universidades do país já para o ano letivo de 2001-2002, oferecendo bacharelado, mestrado e doutorado.
A tecnologia também tem se mostrado um meio eficaz para assegurar a expansão da astrologia. No começo dos anos 80 passou a se generalizar a utilização de programas de computadores. Softwares como Astrolabe, Matrix, Time Cycles e Cosmic Patterns têm sido amplamente utilizados pelos astrólogos para confeccionar mapas astrais e realizar previsões. Desde os anos 90, a internet já permitem o "download" de programas que também fazem previsões e mapas em tempo real.



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