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FENOMENOLOGIA DA DEBILIDADE
Entre 1952 e 1953, o filósofo alemão Theodor Adorno estudou a coluna de astrologia
do jornal "Los Angeles Times", quando morava nos EUA
Ricardo Musse
especial para a Folha
Pouco depois de regressar, em 1952, à Alemanha,
de um exílio de 16 anos, T.W. Adorno retorna aos
EUA, onde permanece por quase um ano. Elabora, então, uma análise da coluna de astrologia do
jornal "Los Angeles Times".
A escolha desse tema -a astrologia nos meios de comunicação de massas- prende-se a um esforço de
compreensão da então recente irrupção, num mundo
completamente iluminado, "da calamidade triunfal",
da qual o nazismo foi a expressão mais nítida. O livro
que, na ocasião, escreveu com Horkheimer, "Dialética
do Esclarecimento" (1947, no Brasil publicado pela ed.
Jorge Zahar), funciona como uma espécie de sistema de
referências para uma série de investigações complementares; pesquisas essas que selam um pacto entre a
orientação especulativa dos frankfurtianos e a sociologia empírica norte-americana.
Embora Adorno estivesse, desde 1937, em contato
permanente com as técnicas da sociologia empírica,
sempre rejeitou o modelo de investigação que denomina "administrativa", que se limita a averiguar fatos, ordená-los e colocá-los à disposição como informação,
sem analisar seus pressupostos e suas consequências
econômicas e sociais.
Adorno tampouco concorda com a forma usual de
aplicação das técnicas práticas de investigação. Já em
sua pesquisa sobre a música radiofônica, questiona a
ênfase na quantificação dos "estímulos", pois ela não leva em conta que o imediato das reações subjetivas, individuais, é mediado "não só pelos mecanismos de propaganda e a força de sugestão do aparato, mas também
pelas conotações objetivas do meio e do material com
que são confrontados os ouvintes e, por fim, pelas estruturas sociais mais amplas, até chegar à sociedade como um todo".
São tais pressupostos teóricos e metodológicos que
explicam a atualidade da análise adorniana da astrologia. "The Stars Down to Earth" (As Estrelas Caem sobre
a Terra, ed. Routledge, EUA) permanece como um modelo de sociologia empírica que, ao ir além das técnicas
de quantificação, atinge o ideal de toda investigação social crítica, isto é, mostra como nas reações subjetivas
cintilam determinantes sociais objetivos.
A especificidade do seu projeto sociológico, sua diferença em relação à sociologia clássica, é que, enquanto
esta, em geral, por oposição à psicologia, enfatiza apenas os condicionantes econômicos e sociais da ação,
Adorno, preocupado em explicar movimentos de massa cujos participantes parecem agir contra seus próprios interesses racionais de autoconservação, incorpora a psicanálise como mediação essencial para a compreensão da relação entre indivíduo e sociedade.
Sua interpretação da astrologia parte de uma indagação elementar: como entender a estima pública da astrologia, num momento em que o conhecimento científico foi inteiramente incorporado à vida prática e à
mentalidade predominante?
O papel do oculto
A resposta que propõe passa pela delimitação de seu objeto. Na astrologia dos meios de
comunicação, o oculto desempenha papel secundário,
pois, ali, ele se encontra institucionalizado, de acordo
com os ditames do mundo ilustrado. Por conseguinte,
não se trata de explicar experiências ocultas como expressão do inconsciente, como fez Freud em "O Estranho"; ou mesmo de destacar o legado cultural pela reconstituição do processo de refundição de velhas superstições, como faz certa antropologia. Resta, portanto, explicar a demanda pela astrologia pela via da análise de seu conteúdo próprio, procurando identificar sobretudo as características implícitas de seu destinatário.
A astrologia mescla um contorno irracional -a tese
de que seus prognósticos e conselhos procedem dos
movimentos dos astros, aceita com naturalidade pelos
leitores- a um núcleo racional, o fornecimento de conselhos pragmáticos e úteis para os problemas do cotidiano (não muito diferentes das orientações das colunas de psicologia popular).
A coluna astrológica, mesmo tendo em vista uma provável atitude ao mesmo tempo indulgente e desconfiada de seus seguidores, procura satisfazer anseios de indivíduos que estão convencidos de que outros (ou alguma força desconhecida) devem saber mais sobre ele e
sobre o que deve fazer do que ele próprio.
O tema principal de "The Stars Down to Earth" é, portanto, a forma como a indústria cultural pressupõe e
reafirma a reificação do indivíduo, sua adequação às
modernas formas de dependência psíquica e social.
Adorno promove um extenso mapeamento das figuras
da individualidade contemporânea, uma espécie de fenomenologia da debilidade do sujeito no "mundo administrado".
Seus resultados não podem ser resumidos sem a complexa rede de mediações mobilizada por Adorno. O que
lhe permite passar de forma convincente do micro para
o macro, daquilo que aparentemente tem pouca importância no andamento da sociedade para uma compreensão precisa e determinada do todo social não reside apenas na já mencionada incorporação dos conceitos da psicanálise. O segredo metodológico de Adorno
consiste principalmente na atenção que concede às
contradições, em suma, na retomada do método dialético ensaiado por Marx em "O Capital".
A lógica da construção e funcionamento da coluna de
astrologia, examinada minuciosamente por Adorno, a
partir de sua premissa formal -adotar um estilo que
induza a crença de que possui um conhecimento concreto dos problemas dos leitores-, busca equilibrar
uma série de exigências contraditórias: a dicotomia
ameaça/alívio (configurada pela polaridade divergente
entre diagnóstico e conselho ou no propósito de infundir angústia e satisfazer o narcisismo); o par real/fictício; as antinomias trabalho/prazer, função pública/vida
privada, produção/consumo, adaptação/individualização, dependência/autonomia, submissão/resolução
(abordadas tanto em sentido psicológico quanto social), a relação individual/universal etc.
As dificuldades objetivas dessas aporias -que derivam das articulações da sociedade capitalista- são elididas, na coluna de astrologia, por meio de um conjunto de procedimentos que Adorno denomina "enfoque
bifásico". A forma de resolução dessas contradições,
pressuposta e proposta pela indústria cultural -eis aí
um ponto-chave da interpretação adorniana-, decorre de uma imposição ao mesmo tempo conformista e
autoritária.
Ricardo Musse é professor do departamento de sociologia da USP.
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