São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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O enigma da pureza

Contos de "Histórias de Família", do mineiro Luiz Vilela, tematizam personagens remediados do interior

José Maria Cançado
especial para a Folha

Há algo meio inaceitável, um escândalo mesmo, no coração do mundo e da arte literária de Luiz Vilela: a perfeita desproporção entre a dramaticidade extrema, de vida e de morte, que golpeia e força (como que por detrás de uma porta que não irá se abrir nunca) as situações criadas nos seus contos, e a quase decepcionante exiguidade dos meios com que ele as cria. Parece inumano. Pois, diante dos contos de Luiz Vilela, a pergunta que nos incomoda é: então tudo isso pode ser contado só assim, com esse encurtamento tão completo de expedientes, sem nenhuma tirada maior, da língua e da narração, com essa antiperformance toda? E sem que haja perda nenhuma? Parece que pode. O que é mais do que embaraçoso para nós. Talvez por isso muitos dos melhores contos de Luiz Vilela sejam aqueles nos quais os personagens são adolescentes (pois com estes acontece serem acossados por um máximo de mundo, que têm que acolher e desafiar com um repertório que não os socorre muito e mediações que ainda têm o pavio curto). Este livro (o primeiro, de contos, que Luiz Vilela publica desde "Lindas Pernas", de 1979) é portanto representativo da sua arte por isso: a maioria dos dez contos nele incluídos tem como personagens esses adolescentes, postos diante do enigma nada claro nem muito apaixonante da família. Assim, em "Enquanto Dura a Festa" (já publicado antes em "Tremor de Terra", de 1967, seu primeiro livro) e "Avô", o que há é o adolescente espiando, como que por um observatório que é só seu, mas nem por isso privilegiado, a morte do avô.


Diante de seus contos, a pergunta que nos incomoda é: então tudo isso pode ser contado só assim, com esse encurtamento tão completo de expedientes, sem nenhuma tirada maior, da língua e da narração?


Morte como artefato
Essa morte é tanto uma espécie de artefato, com todo o acotovelamento dos vivos que ela provoca, a curta caída numa sociabilidade subitamente redescoberta pelos que ficaram, como o espessamento, aos olhos do neto e por cima da sua cabeça e do céu que o protege, de um enigma que ele não esperava ter que olhar, mas que agora não tem mais jeito: ao mesmo tempo que a morte colhe o avô, uma outra coisa, e que não é propriamente a vida, colhe o neto (a perfeita desproporção, mencionada no início, entre a enormidade do que sobrevém ao neto e a quase ofensiva simplicidade dos meios com que isso é narrado ganha nessas situações sua maior tensão e seu efeito estético de emoção mais que perfeito).
Mas este livro (cujos contos, salvo engano, já foram todos publicados em livros anteriores do autor, como o já referido "Tremor de Terra", "Tarde da Noite", de 1970, e "O Fim de Tudo", de 1973) é também representativo da obra de Luiz Vilela (nascido em 1942 em Ituiutaba, onde vive) por uma outra razão. Como o próprio título indica, todos os contos têm como situação o mundo familiar. E essa é uma das paisagens ficcionais fortes de Luiz Vilela, ao lado talvez, como indica Augusto Massi, no prefácio, do trânsito entre metrópole e interior.
O "familialismo" de Luiz Vilela é de outra índole e de uma outra "sociologia" com relação ao de outros escritores mineiros. Ao contrário, por exemplo, do de Drummond ou de Pedro Nava, o de Luiz Vilela estabelece um outro: nem propriamente patriarcal nem decadente nem de proprietários nem arruinado: o das classes remediadas do interior. Nenhum quietismo, contudo: como todas as famílias não propriamente felizes deste mundo, elas também têm promessas de felicidade frustradas que lhes são próprias.
É desse tipo a promessa de felicidade que volta a tentar a tia Lázara em "O Violino", quando o sobrinho (este também um adolescente) reconduz o instrumento a ela, depois de encontrá-lo sepultado entre os trastes da família. Após uma curtíssima temporada de música e de ventura, sustentada pelas cordas, pela crina retesada do arco e um desorbitado, isso mesmo, desorbitado talento musical, tia Lázara é levada, pela família, a sepultar de novo o instrumento.
Assim também, em "As Neves de Outrora", em que uma outra tia, contrapassante com relação à plugação geral da vida no suposto progresso, recompõe diante do sobrinho (é sempre um, pois tia dá mais jogo do que mãe, esse afeiçoamento sem futuro) uma invencível e inesperada plenitude.
Que não se conte aqui com uma solução e uma escolha entre metrópole e interior, adolescência e maturidade, família e mundo. Não é isso que a arte de Luiz Vilela oferece. O que ela oferece é que tais coisas -e o conflito e o equilíbrio entre elas- brilhem na sua máxima significação a partir o que parece ser a mobilização quase nenhuma de recursos expressivos, quase como que a partir de si mesmas. Se há um escândalo aqui é o da pureza (presente em vários desses contos) da arte literária de Luiz Vilela.


José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.

Histórias de Família
128 págs., R$ 18,00
de Luiz Vilela. Editora Nova Alexandria (r. Dionísio da Costa, 141, CEP 04117-110, SP, tel. 0/ xx/11/ 5571-5637).



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