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Leituras de guerra
Diretor da Biblioteca Nacional do Iraque, em Bagdá, Saad Eskander narra a difícil tarefa de reconstruir a instituição em meio a atentados
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Desde os estragos
causados durante a
invasão do Iraque,
em 2003, a Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque (Bani), em
Bagdá, vem se reconstruindo.
Reaberta para visitação em
julho de 2004, ela vinha ganhando cada vez mais visitantes, até que, no dia 8 deste mês,
houve um retrocesso inédito: a
própria Guarda Nacional Iraquiana (GNI) invadiu e depredou as instalações.
Saad Eskander, diretor da
instituição desde a queda do
governo de Saddam Hussein,
ainda em 2003, concedeu entrevista à Folha por um telefone que falhava tanto quanto
um celular no subsolo. "Só conheço conexão pior por aqui."
Sobre os responsáveis pela
segurança no Iraque, declarou:
"Em vez de protegerem os livros e nos apoiarem, eles depredam a instituição que preserva o legado histórico do
país".
Para Eskander, falta à administração iraquiana uma postura conciliatória, semelhante à
do brasileiro Jorvan Vieira,
técnico da seleção iraquiana
que venceu a Copa da Ásia de
futebol em 29/7: "Vieira é a figura mais popular do país. Os
iraquianos criticam os políticos
e pedem que sigam o exemplo
da seleção".
Um diário dos acontecimentos da biblioteca desde dezembro passado -incluindo notas
de morte violenta de funcionários e parentes- foi publicado
pela British Library (em
www.bl.uk/iraqdiary.html),
uma das instituições que financiam sua reestruturação.
Eskander terminou a edição
de julho prometendo não continuar o diário, em respeito à
equipe, pois as histórias "exploram as tragédias" da biblioteca.
FOLHA - Como foi a invasão da Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque pela Guarda Nacional Iraquiana? Como está a situação?
SAAD ESKANDER - Eles ocuparam
a bilblioteca na manhã da quarta-feira (8/8). Destruíram os
portões, as portas e quebraram
janelas. Deixaram o prédio na
sexta (10/8).
FOLHA - O sr. estava lá?
ESKANDER - Não, porque havia
um toque de recolher em Bagdá. Não se podia circular pela
cidade.
FOLHA - Como eles destruíram os
portões?
ESKANDER - Usaram armas.
Quebraram portas e janelas e
subiram ao topo do prédio.
Eles saíram, mas deixaram
muita coisa quebrada.
FOLHA - Portanto, eles concordaram em deixar a biblioteca?
ESKANDER - Não, não foi um
acordo. Eles apenas saíram e
podem voltar amanhã ou qualquer dia. Talvez tenham nos
ouvido, mas fazem o que querem, não se importam com o
que dizemos ou com a legalidade de suas ações. Eles não escutam civis, gente como nós.
FOLHA - Já aconteceu antes?
ESKANDER - Nós a fechamos por
duas semanas no ano passado
devido à falta de segurança.
FOLHA - Foi a primeira vez desde
2004 que soldados entraram destruindo instalações?
ESKANDER - Sim. Durante a
[guerra que levou à] queda do
regime de Saddam, o edifício foi
destruído. Foi incendiado duas
vezes. Reconstruímos o prédio,
que foi reaberto a visitação em
julho de 2004.
FOLHA - Como foi a reconstrução
da biblioteca?
ESKANDER - Precisou de muito
trabalho. Começamos a organizar a infra-estrutura da Bani,
contatamos organizações internacionais pedindo apoio a
nossos projetos. Logo, metade
do orçamento vinha de italianos e japoneses. Conseguimos
reestruturar todos os departamentos. As organizações devem trazer novas tecnologias,
novos esquipamentos e novos
sistemas. Eles estão patrocinando a modernização da instituição.
FOLHA - Quão danificada ficou a biblioteca?
ESKANDER - Nossa instituição
foi a mais danificada do Iraque.
Perdemos 60% dos arquivos,
incluindo documentos, gravações, fotografias e mapas. Perdemos cerca de 25% dos livros,
especialmente manuscritos raros. Perdemos todo o equipamento e os móveis, e a estrutura do prédio sofreu danos consideráveis.
FOLHA - Desde 2004, as pessoas visitam a biblioteca normalmente?
ESKANDER - Sim. A maioria dos
freqüentadores é de universitários e pesquisadores.
FOLHA - Segundo seus números,
houve 447 visitantes na biblioteca
em junho e 503 em julho...
ESKANDER - Por causa da situação de insegurança -a biblioteca é localizada numa área muito perigosa, cercada de patrulhas armadas. Por isso a visitação não é grande.
FOLHA - Quantas pessoas utilizavam a biblioteca antes da guerra?
ESKANDER - A média diária era
de 250 visitantes.
FOLHA - Ela ainda conserva um
acervo importante?
ESKANDER - Temos centenas de
livros valiosos, dezenas de milhares de documentos e gravações importantes sobre a sociedade e a política do Iraque.
Em vez de os protegerem e
nos apoiarem, eles [os soldados] depredam a instituição
que preserva o legado histórico
do país, que é um legado histórico do mundo.
FOLHA - Que tipo de livro os visitantes procuram hoje em dia?
ESKANDER - Principalmente os
de ciências humanas e sociais,
como sociologia, filosofia, política, relações internacionais e
direito.
FOLHA - Voltou a trabalhar normalmente depois dessa invasão?
ESKANDER - É claro. Abrimos
normalmente. Não fecharemos
a biblioteca.
FOLHA - A biblioteca fica em frente
a uma base de segurança?
ESKANDER - Sim. Os norte-americanos e o Exército iraquiano
têm uma base a cerca de 20 metros de nosso edifício, com tanques e centenas de soldados armados.
FOLHA - Mesmo assim quiseram
usar o prédio da Bani?
ESKANDER - Não acho que ela
seja importante para eles. Nosso prédio nem é o mais alto, há
muitos outros mais altos na
área.
FOLHA - Procurou as autoridades
iraquianas e americanas?
ESKANDER - Sim, mas não responderam.
FOLHA - Como consegue manter a
Bani em funcionamento? O que faz
os funcionários permanecerem trabalhando em condições tão difíceis?
ESKANDER - Acho que a equipe
ficou inspirada pelo trabalho
duro de reconstrução do edifício e quer compartilhar o legado cultural com a comunidade.
FOLHA - Um brasileiro foi o técnico
da seleção iraquiana de futebol...
ESKANDER - Sim, o Vieira [Jorvan Vieira, que teve menos de
três meses para treinar os campeões da Copa da Ásia].
FOLHA - Após ganhar o campeonato, ele declarou que o pior problema
que superou foi a falta de cooperação entre jogadores de grupos étnicos diferentes. Considera o triunfo
iraquiano no esporte uma esperança para o país ou isso não passa de
distração dos problemas reais?
ESKANDER - É uma esperança.
Todos os iraquianos, independentemente de religião ou origem, comemoraram a vitória
juntos. Todos dançaram e cantaram nas ruas. Não é uma distração. Os iraquianos, como os
brasileiros, gostam de futebol
-e adoram o bom futebol.
O que une os iraquianos é o
futebol. A seleção iraquiana
tem jogadores curdos, sunitas,
xiitas, mas o técnico brasileiro
conseguiu fazer o time trabalhar como uma unidade.
É por isso que teve sucesso,
espero que ele fique na seleção
[seu contrato restringiu-se à
Copa da Ásia] porque todos os
iraquianos -crianças, homens
e mulheres- gostam de Vieira.
Ele é a figura mais popular do
Iraque, mais do que o presidente [Jalal Talabani] e o primeiro-ministro [Nuri al-Maliki].
FOLHA - Então, a união entre jogadores de grupos étnico-religiosos diferentes serviu de exemplo?
ESKANDER - Sim, porque todos
os iraquianos falam sobre a seleção nacional. E dizem aos políticos: "Sigam o exemplo da seleção. Esses jovens trabalharam pelo Iraque e conseguiram
trazer a Copa da Ásia". Os iraquianos criticam os políticos e
pedem que sigam o exemplo da
seleção.
FOLHA - As pessoas usam o futebol
como exemplo para os políticos
quando discutem nas ruas?
ESKANDER - Somos livres para
criticar o governo. Fazemos isso na TV, nas mesquitas, nas
ruas... Há liberdade, não é como
na época de Saddam. Por exemplo: estive na TV e critiquei o
ministro da Defesa, a GNI, jornais publicaram minhas afirmações contra o ministro. Há
liberdade de expressão.
FOLHA - Que livro de sua biblioteca
o sr. recomendaria aos líderes para
que dêem um fim a esta guerra?
ESKANDER - Não me ocorre. Não
sei. Nossa literatura sobre coexistência pacífica não é grande,
porque o Iraque vive em violência há décadas. Portanto, não
temos boa literatura sobre resistência pacífica. Em árabe,
pelo menos, não me lembro.
Talvez Gandhi, o líder indiano. Esse é um bom exemplo a
ser seguido pelo Iraque e por
outras nações. Ele foi um gênio,
expulsou os britânicos da Índia, estabeleceu uma república,
um sistema democrático, um
sistema federalista que uniu diferentes grupos étnicos e lingüísticos em um só país. Espero
que nossos políticos leiam sobre paz e compromisso.
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