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O escritor, morto há dez anos, fez do silêncio um refúgio impossível
Despalavras de Beckett
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha
Na busca de uma "literatura da
despalavra", que escave a superfície desgastada do verbo e permita
entrever o que sob ele se esconde,
tudo ou nada, programa estético
elaborado precocemente que, em
1937, se adiantava à prática do jovem autor, Samuel Beckett erigiu
no silêncio um refúgio tão mais
desejável quanto mais impossível
e distante.
Às vésperas da publicação de
"Murphy", romance em que ainda se reconhecem os ecos da gigantesca figura de Joyce, Beckett
enunciava com todas as letras a
vontade de trocar o manto de
uma prodigiosa capacidade de fazer as palavras dizerem tudo pelo
desejo de nelas calar o que é sentido congelado, excessivo, ruidoso,
dispersivo. De "Watt", narrativa
seguinte de uma longa série, passando pela trilogia do pós-guerra,
"Molloy", "Malone Morre" e "O
Inominável", em todo o teatro
que ainda viria, até sua morte, a
três dias do Natal de dez anos
atrás, sua literatura é uma escrita
de resistência tanto ao "anonimato difícil de penetrar" do mundo,
quanto ao açoite de palavras sob o
qual este mesmo mundo "morre
covarde, pesadamente nomeado".
Curioso caminho, que, trilhado
sem concessões e com rigor, se arma numa sucessão de paradoxos,
avança por impasses: "Sempre falo demais ou de menos, o que
sempre me faz sofrer, tanto sou
apaixonado pela verdade. (...) A
longo prazo, meus excessos verbais se revelavam pobreza e vice-versa. (...) Não me calava, aí está,
não me calava... porque dizendo
não necessitar de ninguém, não
dizia demais, mas uma ínfima
parte do que deveria ter dito, que
não saberia dizer, deveria ter calado".
O silêncio a que a obra de Beckett aspira não pode ser alcançado por inércia, por meio de um recolhimento solipsista a uma bolha
indevassável em meio às ruínas e
ruídos do mundo, que tampouco
pode ser calado à força. Provas
disso são a copiosidade de seus
textos, que, mesmo reduzidos e
condensados à brevidade de páginas ou linhas, continuaram a verter em ritmo de conta-gotas incessante até seus últimos dias, e a
compulsão narrativa a que estão
submetidas, a contragosto, suas
personagens, cadeias ininterruptas de palavras desconexas e esvaziadas de sentido, fragmentos de
discurso e vivências esparsas, para as quais não há perspectiva do
descanso em paz.
Mesmo antes da virada estilística do pós-guerra, na obra inicial a
relutância em compactuar com as
retóricas vigentes em nome de
uma linguagem voluntariamente
empobrecida e o tropismo em direção ao silêncio já se deixavam
insinuar aqui e ali, seja no título
de sua primeira coletânea de poemas, "Echo's Bones and Other
Precipitates" (1935), em que a figura imaterial da ninfa reduz a
dureza óssea dos discursos a ecos,
seja na figura arquetípica de Bellacqua, imagem acabada da acídia tomada de empréstimo a
Dante e na qual Beckett se reconheceu a ponto de batizar assim
seu alter ego ficcional que se esquiva dos laços humanos em
meio à boêmia artístico-universitária de Dublin, em "More Pricks
than Kicks" (1934), sua primeira
coletânea de contos.
Muitas vezes é a imagem aterradora do silêncio eterno dos espaços infinitos, como num poema
de 1937 que recorta, no bucolismo
de uma paisagem verdejante, a figura mínima de uma mosca,
zumbido cessante e posta em repouso sobre uma vidraça, apenas
para em seguida flagrar seu esmagamento, súbito e inesperado, por
um polegar hostil, registro de
uma morte ignorada pela imensidão silenciosa de um intenso e
imperturbável céu azul.
Na obra dramática, repete-se a
mesma tensão entre personagens
obrigadas ao discurso cotidiano
das "mesmas velhas perguntas,
mesmas velhas respostas", cuja
existência penosa, mutilada, se
prolonga em palavrório inútil, e a
ânsia pelo silêncio. Em "Fim de
Partida", ilhados como sobreviventes de uma humanidade devastada, quatro criaturas incapazes de se calar definitivamente sofrem os resquícios do rumor fabulatório do mundo, alimentado
por uma convivência forçada. Em
"Dias Felizes", os monossílabos
do marido contrariado e o discurso elegíaco vazio de Winnie se
equivalem como faces de uma
mesma temporalidade aprisionadora e infernal.
Nas miniaturas dramáticas da
maturidade, o silêncio se adensa
para que as imagens avultem, como a das passadas fantasmáticas
da protagonista de "Footfalls" ou
as lembranças evocadas por um
verso de Yeats em "but the
clouds". Sua presença é notável
tanto nas rubricas, em que "pausa" é a indicação mais constante,
como na predileção pela pantomima. Duas peças podam as palavras já a partir do título ("Act Without Words" 1 e 2). Também é
revelador que Beckett tenha recorrido a um Buster Keaton aposentado, esquecido gênio do cinema mudo, para protagonizar sua
única incursão pessoal no cinema
"Film", 1965, co-dirigido com
Alain Schneider, em que um homem solitário luta para silenciar
todos os vestígios de sua passagem pelo mundo.
Mas foi em "O Inominável" que
a busca vã pelo silêncio, tarefa fadada ao fracasso desde o princípio, assumiu sua face mais visível.
A radicalização da redução estrutural operada por Beckett sobre as
estruturas narrativas volta-se ali
para o próprio "eu" que fala. Sua
identidade deslizante descaracteriza a fonte do discurso, o sujeito:
o romance passa a ser uma máquina de palavras que gera a si
própria, autônoma, desgarrada e
fora de controle.
O movimento é sisífico, interminável, a narrativa oscila entre a
série infinita e o impasse, o murmúrio incessante e o silêncio.
Num romance como esse, no centro da espiral de adensamento
que a trilogia ficcional do pós-guerra realiza, o desfecho não tem
vez: "Talvez me tenham levado
até o umbral de minha história,
ante a porta que se abre para a minha história, isso me espantaria,
se ela se abre, serei eu, será o silêncio, aí onde estou, não sei, não o
saberei nunca, no silêncio não se
sabe, é preciso continuar, não
posso continuar, vou continuar".
À falta de um eixo que estruture
a narrativa, a primeira pessoa passa a lugar privilegiado de uma disputa que, mais do que guerra ou
jogo pronominal, tem a ver com o
esfacelamento da identidade, posta em questão a partir dos fundamentos. Autor, narrador, personagens existem em regime provisório, de "vice-existência", continuamente revogável. Visando, no
limite, ao cerne da essencialidade,
disposto a cessar quando capaz de
alcançar o silêncio dito essencial,
a fonte de toda a literatura, nas expressões de Maurice Blanchot, o
próprio discurso se confessa incapaz, seja de abdicar da tarefa inesgotável, calando-se, seja de cumpri-la a contento. A disposição do
narrador para descartar todas as
soluções de compromisso (a
aproximação confessional, a ficcional, o relatório isento, a representação ordenada, mimética)
anteriormente desacreditadas
conduz a fala necessária a um impasse.
O silêncio provisório, a pausa,
não satisfaz. Tampouco se avizinha o impossível silêncio almejado, rigoroso, que já disse o que
havia a ser dito. A proclamada nova inflexibilidade não abrevia o
discurso necessário do narrador,
mas dá-lhe caráter tendencialmente infinito. O único caminho
possível para chegar a esse discurso depurado é uma via negativa,
passa pela demonstração de tudo
aquilo que ele não é, da insuficiência mentirosa dos múltiplos
aspectos que ele já assumiu no
passado. A negação, a afirmação
por exclusão, implica voltas infinitas na construção narrativa. Paradoxalmente, a vontade de negar
os sofismas obriga aos recursos
retóricos, ao desnudamento das
armadilhas para neutralizá-las. O
discurso que se quer direto, reta
razão, acaba revelando-se o mais
tortuoso: desprovido do artifício
das máscaras fixas, desmancha-se
na pluralidade de artifícios.
À semelhança de fractal desconcertante, o riocorrente da narrativa de "O Inominável" foge à
apreensão no micro e no macro,
na passagem escolhida e no romance como um todo, ele também fragmento de uma construção sem fim. Foge à definição familiar, dirige-se para um caminho desconhecido, ou para a ausência dele, o que fica patente tanto para quem lê uma página, tomado de assalto pelo ritmo sufocado a que nele chega a escrita
beckettiana, como para o leitor
esperançoso e tenaz, que atravessa o livro na expectativa de uma
descompressão que não vem. O
estilo se define por uma contínua
recapitulação para apagar os traços, um voltar atrás com as palavras não para corroborar certezas,
muito menos para melhor armar
situações épico-dramáticas, mas
para cancelar as possibilidades insinuadas, cassar a palavra emprestada às "personae", que mal
chegam a se cristalizar. Como já
se passava na relação entre as
duas partes de "Molloy", esse efeito perturbador estende-se sobre
toda a trilogia, acentuando-lhe o
caráter inovador.
Fábio de Souza Andrade é professor de
teoria literária na Universidade Estadual de
Campinas e autor de "O Engenheiro Noturno
- A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
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