São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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PONTO DE FUGA

Viva a obscenidade

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

399 palavrões, 128 gestos indecentes, 221 cenas de violência. Ficar contando, com essa minúcia, os "fuck", os "bitch" e os dedos médios em riste demonstra o grau doentio da censura puritana e o seu ridículo. Trey Parker, 29, e Matt Stone, 27, inventaram o mais delirante e corrosivo dos desenhos animados. "South Park" invadiu os cinemas neste verão e deve ter provocado orgasmos coléricos nos censores da Motion Picture Association of America. A MPAA não é um órgão oficial, é um controle autônomo, mas de grande peso econômico, porque determina as faixas etárias do público: mais essa faixa é elevada, menos haverá de espectadores potenciais. Parker e Stone fizeram subir a audiência de televisões no mundo inteiro com a série que precedeu o filme e exigiram, no contrato, todo o direito sobre a edição final do longa-metragem. Resultado: a cada passagem censurada, jogando com a burocracia moralista, eles inventavam uma solução pior, mais irreverente e mais cáustica. Revelaram detalhes. Por exemplo: se a palavra "Deus" vier junto com a palavra "fuck", o filme é proibido para 17 anos, mas se for acompanhada por "bitch", a proibição desce para 15... "South Park" mostra a paranóia furiosa de adultos acuando crianças. É a caricatura da cretinice puritana, da sexualidade reprimida, dos lobbies em favor das armas e contra os homossexuais. É também gargalhada saudável e pedagógica que ataca os preconceitos crassos dentro e fora da tela.

Folga - O Film Forum, cinema de arte em NY, apresenta 40 filmes num festival intitulado The Joy of Pre-Code. Este "code" é o célebre código Hays, ativado por Hollywood em 1934. Will H. Hays, o chefe dos censores, tinha o aspecto de um camundongo alienígena. Foi ele quem estabeleceu regras muito estritas de bons costumes, intocadas até 1966. Elas controlaram e, de um certo modo, estimularam a criação, já que os diretores eram obrigados a driblar a estupidez com soluções inteligentes. Os primeiros anos dos filmes falados, anteriores a 1934, escaparam ao controle tirânico que cronometrava os segundos dos beijos e proibia exibição de umbigos. As mocinhas, então, transavam fora ou antes do casamento, e os amores podiam hesitar entre três ou mais parceiros. Havia sedutores impudentes e drogas. Criminosos às vezes eram simpáticos e humanos. Esses filmes foram estigmatizados, desaparecendo das telas e mesmo das histórias escritas do cinema. Victor Fleming, Monta Bell, James Whale e vários diretores, cujos nomes são hoje obscurecidos, assinaram pequenas obras-primas cínicas e sentimentais.

Dimensões - O sexo, como se sabe, situa-se nos miolos. Mudam os tempos, mudam inteiramente os estímulos eróticos. As estrelas do "pre-code", em 1930, eram todas pequeninas, com grandes cabeças, rostos redondos, olhos imensos e bocas miúdas. A seda escorria sobre curvas suaves. Eram adoráveis como Betty Boop. Nos anos de 1950, as formas crescem, a carroceria se dilata, as bocas rasgam-se imensas em rostos angulosos. Sutiãs armavam os seios e as roupas eram como carapaças. Esses Cadillacs chamavam-se Jane Russel ou Sophia Loren. O desejo tornara-se monumental.

Centelha - Mais alta do que a média e meio feiosa, Bebe Daniels tinha um físico de exceção entre as atrizes do "pre-code". Cheia de vitalidade, interpretou mulheres independentes e modernas, que buscavam um sentido na vida longe do casamento, embora, é verdade, às vezes, terminassem por ceder a um "macho man". Nossos modernistas, de Mário de Andrade a Antonio de Alcântara Machado, foram fascinados por Bebe Daniels.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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