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O XEQUE-MATE CIBERNÉTICO
Um dos principais criadores em mídias digitais, o brasileiro Eduardo Kac fala da instalação que
apresenta na 26ª Bienal de São Paulo, com início no próximo sábado, e explica a relação entre arte e biotecnologia
Giselle Beiguelman
especial para a Folha
Eduardo Kac é um dos mais importantes criadores
no campo das mídias digitais. Professor da prestigiosa Escola do Instituto de Arte de Chicago, nos
EUA, dedica-se desde os anos 1990 à reflexão sobre
arte e biotecnologia.
Essa linha de investigação resultou em diversos projetos,
dos quais destacam-se aqui o mais recente, "Move 36"
(2004) e "GFP Bunny" (em curso desde 2000), cuja documentação está em exposição na Laura Marsiaj Arte Contemporânea [tel. 0/xx/21/2513-2074], a partir de amanhã,
no Rio. "Move 36" faz parte da Bienal de São Paulo e já está
em exibição na Bienal da Coréia. Trata-se de uma instalação viva, cujo título faz referência à histórica partida de xadrez entre Kasparov e o supercomputador Deep Blue em
1997, na qual a máquina venceu o homem.
De acordo com Kasparov, foi no 36º movimento que a
partida foi definida em favor de Deep Blue. Em sua obra,
Kac transforma esse momento em mote para discutir a inteligência artificial e suas ambivalências em relação ao
pensamento cartesiano.
Segundo Kac, se, por um lado, o pensamento de Descartes foi crucial para a compreensão matematizada do mundo, estando, por isso, relacionado à própria história da
computação, por outro, foi esse mesmo pensamento que
consolidou a visão dualista da vida, dividida entre mente e
corpo, entendendo o corpo como a porção maquínica e
hierarquicamente inferior do conjunto.
"Acho interessante pensar que, no jogo em que Deep
Blue venceu Kasparov, a máquina exibiu sutileza, enquanto o ser humano falhou naquilo em que era imbatível. Onde antes falhava a máquina, falhou o humano. Onde as
nuanças humanas haviam se sobressaído, a nuança da
máquina preponderou. A obra indaga: que lição extrair
desse evento para o futuro?", diz o artista.
A discussão é feita de maneira irônica em um tabuleiro
de xadrez com quadros de areia e terra, onde, no ponto
exato em que Deep Blue preparou o xeque-mate, se encontra um vaso com uma planta modificada em laboratório. A modificação foi realizada por um gene artificial criado a partir da tradução da célebre frase "Cogito ergo sum"
[Penso, logo existo, de Descartes] em código binário e retraduzida em código genético -que faz com que as folhas
se enrolem ao crescer, contrariando sua lógica natural,
que as faria planas na maturidade. "Move 36" obriga a
pensar nos tênues limites que hoje se colocam entre homens, objetos que incorporam qualidades humanas e seres vivos codificados por informações digitais.
No caso do projeto "GFP Bunny", que transformou uma
coelha albina, Alba, em uma verdadeira celebridade internacional, essa reconfiguração de parâmetros entre natural
e artificial é questionada pelo prisma da ética e do afeto.
Nascida em 2000 em um laboratório francês, ela foi modificada pela introdução de uma proteína artificial no seu
embrião. A proteína, conhecida pela sigla GFP e que quer
dizer proteína verde florescente, faz com que o corpo albino do animal, em determinadas condições de luz e temperatura, adquira um tom esverdeado.
Quando o projeto começou, Kac pretendia levar Alba
para sua residência em Chicago para criá-la e, assim, discutir as novas responsabilidades sociais e críticas que
acompanham a produção cultural e científica contemporânea. Proibido pelo laboratório de dar prosseguimento a
essa idéia, criou o movimento "Free Alba", que tem os
mesmos propósitos e é divulgado em várias formas (de
cartazes urbanos a camisetas e comunidades on-line).
A repercussão dessa mobilização compõe "Rabbit Remix", em cartaz no Rio de Janeiro a partir de amanhã, em
que o artista acerta os últimos detalhes de seu livro "Luz &
Letra", com ensaios críticos sobre arte e tecnologia escritos
entre 1982 e 1988.
Em entrevista ao Mais!, Kac comenta e discute as diferentes faces de sua criação.
Você é citado como um dos pioneiros da arte biotecnológica
e um dos precursores da "e-poetry", por seus trabalhos literários dos anos 1980, com vídeo e holografia. Os dois campos de ação são tratados como momentos independentes.
Mas chama a atenção o modo pelo qual a exploração do código, seja ele verbal, seja genético ou binário, ocupa um lugar central na sua reflexão. Poderíamos dizer, então, que
você é, acima e antes de tudo, um artista do código?
A minha preocupação central não é focada no código
em si, mas na multiplicidade de processos comunicacionais. O que sempre me interessou e interessa, como
artista e teórico, foi o desejo de explorar o fenômeno da
comunicação em sua ampla vastidão, desde a linguagem humana até as linguagens de programação, do
chamado código genético até a comunicação entre espécies, da comunicação não-semiótica (como as janelas que permitem a comunicação da temperatura
externa ao interior de uma residência, por exemplo)
aos processos distribuídos em rede (internet).
Seus primeiros projetos, no Rio de Janeiro, tinham
forte conotação política e faziam parte dos movimentos de contestação à ditadura brasileira. Qual é o lugar da política nos seus projetos hoje?
A manifestação política não desapareceu, mas
se tornou mais sutil. No caso da arte transgênica,
todo o meu processo de criação e produção reflete uma crítica à visão determinista de que a genética pode explicar claramente todos os aspectos
da vida. Eu discordo e procuro mostrar que essa
visão não vem de uma "ciência", mas é moldada
por uma visão ideológica particular.
A interdição de Alba tornou-se o mote para uma série
de projetos de intervenção urbana e on-line que exigiam a libertação da coelhinha. A força estética da
imagem do animal em tons de verde florescente tornou-se conhecida no mundo todo. Transformada em
objeto, passível de ser colecionado, não se perde o
sentido mobilizatório da campanha "Free Alba", cedendo ao sensacionalismo que se sobrepôs à discussão sobre a ética e o afeto quanto aos transgênicos?
[O filósofo austríaco] Martin Buber já havia deixado claro que o problema não reside na transformação momentânea de um sujeito em objeto
(como uma pessoa sendo o objeto da afeição de
outra), e sim na fixação dessa condição sem possibilidade de liberdade (como na escravidão). Alba continua sendo um sujeito com meus desenhos e com minhas fotografias, por meio dos
quais me reaproprio da repercussão da obra na
mídia e faço uma "metacrítica visual".
Tudo isso coexiste com as manifestações de rua
e de rede e me ajuda a sustentar a presença de Alba no espaço público e a levar adiante sua dimensão mobilizatória.
Giselle Beiguelman é professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e
autora de "O Livro depois do Livro" (ed. Fundação Peirópolis).
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