São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997.



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Retratos atrevidos



Artistas plásticas utilizam ícones da cultura pop para provocar o establishment
VINCENT KATZ
especial para a Folha, de Nova York

Garotas malvadas. Almas rebeldes. Mulheres que não ligam para o que se pensa delas. Há uma nova geração de mulheres que está se fazendo sentir nas artes, mulheres que chegaram à maioridade na era pós-feminista. Embasada nas conquistas de suas irmãs mais velhas, a classe atual dá como garantidos sua igualdade com os homens, seus direitos reprodutivos e sua relativa liberdade econômica e social. Reivindica o uso de palavras pejorativas como "bitch" (puta, vaca), "girl" e "pussy" (xoxota), transformando-as em emblemas de poder. Alardeia sua sexualidade e até faz piadas a respeito dela.
Rita Ackermann e Alix Lambert são artistas na casa dos 20 anos de idade, residentes em Nova York. Rita nasceu em Budapeste e fez seus estudos acadêmicos lá. Depois de se mudar para o Ocidente, desenvolveu um tema que choca o espectador, centrado em meninas adolescentes e sexualmente atraentes, com pouca roupa, brincando com seringas e "laptops".
Essa obra muito evidentemente não se inclui no âmbito da postura feminista. Sua aparente glorificação do visual das meninas que figuram em revistas de baixa qualidade ou capas de discos, aliada ao uso de drogas, confere um ar especialmente irresponsável ao trabalho de Ackermann. Mas o fato é que ela se sentiu dona de poder suficiente, na condição de mulher jovem, para poder fazer um auto-retrato chocante, um tanto quanto pornográfico, e que isso se tornou aceitável. Para a geração criada à base de MTV e familiarizada com a arte pop, o trabalho de Ackermann é altamente acessível -um desfrutar em tela grande de fantasias hedonísticas comuns.
Também fez sucesso junto às platéias de arte, demonstrando que elas avançaram o suficiente desde os extremos do feminismo radical dos anos 70 para poder aceitar uma artista que se apresenta como sendo deliberadamente decadente. A arte de Ackermann está estreitamente ligada à cultura dos clubbers.
Alix Lambert é uma artista que muda sua vida para fazer arte. Ela não se limita a ir a um ateliê e trabalhar com obras de arte -ela própria se torna a obra de arte. Num de seus primeiros projetos, ela se casou e se divorciou quatro vezes em um ano (três das quais com homens, uma, com uma mulher). Os próprios atos de casamento e divórcio foram a arte: o ciclo de vida acelerado nos EUA do final de século. Para outra peça, intitulada "Male Pattern Baldness" (Calvície Padrão Masculino), Lambert adotou a roupa, os gestos e linguagem corporal de um técnico de basquete, homem, incluindo sua calvície. Essa peça é especialmente notável quando se sabe que Lambert é jovem e bonita.
Como nas fotos dos auto-retratos múltiplos de Cindy Sherman, em que ela adota personas que variam constantemente, o trabalho de Lambert gira em torno do atuar, representar papéis, mas ela não está muito preocupada com as implicações políticas de seu trabalho, com sua política sexual. Para ela, o trabalho parece dizer respeito mais à submersão da personalidade. Como Alix explicou à Folha, "há aspectos de meu trabalho que tratam do ser mulher, mas espero que também seja possível criar um trabalho em torno do ser uma pessoa. Há muitas outras coisas acontecendo. Por exemplo, a psicologia dos esportes".
Revista pró-garotas
"Bust" é uma publicação lançada há três anos, que começou como fanzine e está rapidamente se transformando em revista auto-suficiente. Ela é editada por três mulheres e seu pretexto é explicitamente pró-garotas. Cada edição gira em torno de um tema, com tópicos como o Fenômeno Garotinha, Maternidade, Deusas e a popular Edição Sexo. As editoras são universitárias graduadas, assim como a maior parte da mídia que cerca o cenário rock hoje em dia.
O senso de humor que a revista demonstra -como no artigo sobre etiqueta sexual, em que a autora reclamava de um namorado que brincava com seus mamilos como se estivesse girando o dial do rádio para sintonizar o Japão- é contrabalançado pelo confronto com as questões contemporâneas, angariando leitores dos mais elevados círculos intelectuais. Uma carta de apoio à editora foi escrita por Bill Buford, ex-editor da revista literária inglesa "Granta".
Como explica Debbie Stoller, uma das editoras da "Bust", "eu mesma venho de um pano de fundo acadêmico. Tenho doutorado em psicologia de mulheres da Universidade Yale, e várias de nossas colaboradoras têm origens universitárias. Cheguei à conclusão de que a melhor maneira de efetuar transformações não é continuar fazendo pesquisas e divulgar minhas conclusões em publicações de psicologia pouco lidas, mas tentar criar algo que transmita uma imagem diferente da mulher. Acredito realmente que a cultura pop tem mais poder do que a política para transformar os valores das pessoas. É ali, na cabeça das pessoas, que as transformações realmente começam".
Diferentemente de Ackermann e Lambert, que mantêm distância de afirmações de postura política, a "Bust", talvez por ser um veículo literário, dedicado à liberdade de expressão, adota uma posição mais ativa com relação à possibilidade de provocar mudanças e o quanto isso é desejável. Stoller explica: "Criamos a 'Bust' para que as mulheres aí fora saibam que não são as únicas que não sentem afinidade nenhuma com as revistas femininas 'mainstream', que nem todas as mulheres se preocupam com que cor de meia-calça usar no trabalho ou em saber que o azul é o novo preto".
Quanto à diferença entre o "então" e o "agora", Stoller tem o seguinte a dizer: "Quando as mulheres se rebelaram sexualmente, nas décadas de 60 e 70, elas tentaram ter mais parceiros, tentaram tornar o sexo algo mais 'igual' para os dois e mais imbuído de ternura, acreditaram que havia uma maneira inerentemente 'feminina' de fazer sexo. Hoje, nos anos 90, ainda estamos combatendo uma moral dupla sufocante. Enquanto o fato de se ter alguma experiência sexual antes do casamento evidentemente já é perfeitamente aceitável para as mulheres e já deixou de ser visto como a marca da 'garota mal-comportada', a exploração de outros caminhos da sexualidade, especialmente aqueles que são egoístas ou que não envolvem homens (como a pornografia e o uso de vibradores) continua sendo vista como inaceitável".
Rita Ackermann, Alix Lambert e a "Bust" são todas exemplos de uma mentalidade especificamente nova-iorquina. Elas são altamente individuais, trabalham em seus "métier" próprios, mas têm uma perspectiva social comum. As mulheres estão mais poderosas do que nunca e mais capazes de expressar-se de maneira inovadora. As mulheres sempre se rebelaram contra a camisa-de-força do estereótipo. A geração atual pode até se rebelar contra a revolta, sem perder aquele gume afiado da percepção aguda, divertida, cortante.


Vincent Katz é poeta e crítico de artes plásticas, autor de "Boulevard Transportation", entre outros.
Tradução de Clara Allain.

Onde encomendar: A revista "Bust" pode ser encomendada à Bust Magazine Entreprises, P.O. Box 319, Ansonia Station, New York, NY, 10023.





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