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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Produtos como café sem cafeína, cerveja sem álcool e sexo virtual combinam prazer e constrangimento ao oferecer a realidade desprovida de sua essência nociva

O hedonismo envergonhado

Slavoj Zizek

A Verdadeira Cancún" (2003, de Rick de Oliveira), o primeiro "reality movie" já produzido, acompanha 16 pessoas que passam oito dias em uma mansão à beira-mar, em Cancún [México], para um inesquecível feriado de primavera. O filme, que foi anunciado como sendo "sem scripts, sem atores, sem regras. Tudo pode acontecer durante o feriado de primavera -e aconteceu", não foi um grande sucesso de bilheteria (rendeu menos de US$ 4 milhões). É fácil ver porque, ao contrário do triunfo dos "reality shows" da TV, o filme não emplacou: a tentativa de "deixar a própria vida escrever a história" acabou resultando em um monte de material, do qual os especialistas do estúdio tentaram retirar uma curta narrativa coerente. No entanto, mais importante do que essas críticas tão particulares, é a percepção do plano de fundo ideológico que permitiu que um filme assim fosse viável e plausível. A partir dos anos 50, a psicologia social trabalhou incessantemente a questão de como, na vida social, estamos todos "vestindo máscaras", adotando identidades que ofuscam nosso verdadeiro ser. No entanto vestir uma máscara pode ser estranho: às vezes, mais frequentemente do que imaginamos, há mais verdade na máscara do que naquilo que acreditamos ser o nosso "verdadeiro ser". Pense naquela típica pessoa tímida e impotente que, enquanto se entretém no jogo interativo de espaço cibernético, adota a identidade de tela de um assassino sádico e sedutor irresistível -é simples demais dizer que essa identidade é apenas um suplemento imaginário, uma fuga temporária da impotência da vida real. A questão de fato é que, a partir do momento em que sabe que o jogo interativo do espaço cibernético é "apenas um jogo", ela pode "mostrar seu verdadeiro ser", fazer coisas que jamais teria feito em interações na vida real sob a máscara de uma ficção, e a verdade sobre si própria é articulada.

Gesto de respeito
O lado negativo do fato de vestir uma máscara é a estranha proibição que até recentemente controlava a pornografia explícita: apesar de mostrar "tudo", o sexo real, a narrativa que fornecia o espaço para repetidos encontros sexuais era de regra ridiculamente não-realista, estereotipada, estupidamente cômica, ensaiando uma espécie de volta à commedia dell'arte do século 18, na qual os atores não interpretam pessoas "reais", mas tipos unidimensionais -o Avarento, o Marido Enganado, a Esposa Promíscua. Não seria essa estranha compulsão de tornar a narrativa ridícula uma espécie de gesto negativo de respeito -sim, nós mostramos tudo, mas justamente por essa razão queremos deixar claro que se trata apenas de uma grande piada, que os atores não estão realmente engajados? Hoje, no entanto, este "não transgrida!" fica cada vez mais enfraquecido: pense nas recentes tentativas de combinar cinema "sério" de narrativa com a representação "explícita" do sexo, isto é, incluir em um filme "sério" cenas de sexo interpretadas de verdade (vemos o pênis ereto, a felação, até a penetração de fato); os dois exemplos mais evidentes são os filmes "Intimidade" (2001), de Patrice Chéreau, e "Os Idiotas" (1998), de Lars von Trier. E eu até poderia inferir que a ascensão da "reality TV" em suas diferentes formas, desde as "novelas-documentário" até os programas de competição do tipo "Survival", se baseia na mesma tendência subjacente de ofuscar a linha que separa a ficção da realidade. Quais coordenadas ideológicas sustentam essa tendência? No mercado de hoje, encontramos toda uma série de produtos desprovidos de suas propriedades nocivas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista continua: o que dizer do sexo virtual como sendo sexo sem sexo, a doutrina de Colin Powell de conflito armado sem vítimas (do lado dos americanos, é claro) como sendo uma guerra sem guerra, a redefinição contemporânea de política como a arte da administração especializada como sendo política sem política, até o multiculturalismo liberal e tolerante de hoje como sendo uma experiência do outro privado de sua diversidade (o outro idealizado que executa danças fascinantes e aborda a realidade de uma forma holística ecologicamente saudável, enquanto imagens como o espancamento da mulher ficam longe da vista...)? A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimento de oferecer um produto desprovido de sua substância: oferece a própria realidade desprovida de sua substância da mesma forma que o café descafeinado tem o mesmo cheiro e sabor do verdadeiro café sem ser o verdadeiro café, assim como a realidade virtual é sentida como a realidade sem ser realidade. Não é essa a atitude do Último Homem hedonista de hoje? Tudo é permitido, pode-se desfrutar de tudo, porém desprovido da substância perigosa.

"Chocolate laxante"
O hedonismo de hoje combina prazer com constrangimento -não se trata mais da antiga noção da "medida certa" entre prazer e constrangimento, mas uma espécie de coincidência imediata pseudo-hegeliana dos opostos: ação e reação devem coincidir, a própria substância nociva já deve ser o remédio. O melhor exemplo disso é manifestamente um "chocolate laxante", disponível nos Estados Unidos, com a paradoxal injunção "Você sofre de constipação? Coma mais deste chocolate!", ou seja, da própria coisa que causa constipação. E não seria uma prova negativa da hegemonia dessa atitude o fato de que o verdadeiro consumo desenfreado (em todas as suas principais formas: drogas, sexo livre, fumo...) está emergindo como o principal perigo?
A luta contra esses perigos é um dos principais investimentos da atual "biopolítica". Aqui se buscam desesperadamente soluções para reproduzir o paradoxo do chocolate laxante. O principal competidor é o "sexo seguro" -um termo que faz com que apreciemos a verdade do velho ditado: "Fazer sexo com camisinha não seria como tomar um banho de chuveiro vestindo uma capa de chuva?". O objetivo final estaria aqui, por entre as linhas do café descafeinado, o fato de inventar o "ópio sem ópio": não é de admirar que a maconha seja tão popular entre os liberais que querem sua legalização -ela já é uma espécie de "ópio sem ópio".
Essas coordenadas nos permitem delinear sucintamente o que é falso nos programas de realidade da TV: a "vida real" que encontramos neles é tão real quanto o café descafeinado. Em suma, mesmo que esses programas sejam "pra valer", as pessoas ainda atuam neles -elas simplesmente interpretam a si mesmas. A renúncia padrão em uma novela ("os personagens neste texto são obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas reais é mera coincidência") também se aplica aos participantes dos "reality shows": o que vemos ali são personagens ficcionais, mesmo se interpretam a si próprios de verdade.
O melhor comentário sobre a TV realidade é, portanto, a versão irônica dessa renúncia, usada recentemente por um autor esloveno: "Todos os personagens na seguinte narrativa são ficcionais, não-reais, mas assim também são os personagens da maioria das pessoas que conheço na vida real, portanto essa renúncia não serve para muita coisa".
Então, voltando ao filme "A Verdadeira Cancún": "Sem scripts, sem atores, sem regras" acabou querendo dizer que as pessoas interpretavam a si mesmas, seguindo as mais básicas regras de interação social, e que nada de minimamente imprevisível aconteceu.


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Leslie Benzakein.


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