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A era da modéstia
Após a febre consumista dos anos 1990 e 2000 à custa de empréstimos maciços,
americanos desaprenderam
a viver
com poucos
recursos,
mesmo
os de classe
mais baixa
KENNETH SERBIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando eu era
criança e jovem,
nos EUA, aprendi
que cada geração
deve conquistar
um padrão de vida mais alto
que a geração anterior.
Devido à primazia econômica de meu país, atingi a maioridade nos anos 1960 e início dos
anos 1970 acreditando em que
as necessidades básicas da vida
eram garantidas e em que eu
poderia automaticamente buscar uma carreira que me desse
tanto sucesso financeiro quanto realização pessoal.
Ambos os meus avôs se mudaram da Europa para os EUA,
aprenderam inglês e obtiveram
empregos trabalhando com as
mãos. Um deles era estofador
de móveis, e o outro trabalhava
numa fábrica.
A vida ficou difícil durante a
Grande Depressão, mas, no
boom do pós-Segunda Guerra,
todos os seus filhos ingressaram na nova maioria formada
pela classe média e desfrutaram o maior conforto da história da humanidade.
Meu pai não cursou faculdade, mas sempre teve emprego
trabalhando com máquinas ou
como técnico. Graças aos hábitos econômicos dele e de minha mãe e à ajuda de meus
avós, sempre tiveram casa própria sem contrair hipoteca.
O começo do fim
Mas o primeiro choque petrolífero, em 1973, aliado à inflação causada pelos orçamentos federais inchados da era da
Guerra do Vietnã e da "grande
sociedade" do presidente
Lyndon B. Johnson, trouxeram
em seu bojo um longo período
de estagflação e incerteza. Foi o
começo do fim do grande sonho
da classe média americana.
Em 1978, ingressei na Universidade Yale, esperando encontrá-la fervilhando com o
idealismo e o ativismo que haviam tão notoriamente dinamizado os campi universitários alguns anos antes.
Em lugar disso, porém, me
deparei com uma ênfase grande sobre o pré-profissionalismo, termo sombrio que refletia
a realidade econômica difícil
que minha geração começava a
enfrentar.
Resumindo, significava que
uma educação universitária se
tornara algo altamente competitivo e que já não representava
garantia de um bom emprego.
Em 1981, enquanto o país se
esforçava para recuperar-se
dos juros de 20% do final da década anterior, meu pai perdeu
seu emprego, depois de 25 anos
trabalhando para sua empresa.
Em uma economia que iniciara um processo acelerado de
desindustrialização e, em alguns setores, se tornara incapaz de competir com países como o Japão, ele foi obrigado a
aceitar outro emprego recebendo pouco mais que o salário
mínimo -e sem benefícios.
Minha mãe já trabalhava em
tempo integral para ajudar a
pagar minha educação universitária e esperava poder deixar
o emprego depois que eu me
formasse, em 1982. Mas teve
que continuar trabalhando para ajudar a poupar para a aposentadoria de meus pais.
Comparada com o resto do
mundo, a economia americana
ainda oferecia oportunidades
para os jovens e criativos.
Fui viver e estudar no México e no Brasil e contei com
apoio sólido para obter um
Ph.D em história e conseguir
um emprego acadêmico, um
privilégio imenso num mundo
em que a maioria das pessoas
trabalha em empregos estressantes das 9h às 17h.
Mas, depois de me casar e virar parte da engrenagem econômica, na casa dos 30 anos, lutei para conquistar os benefícios econômicos que meus avós
e meus pais tinham desfrutado
no período de 1945 a 1973.
Meu avô materno não chegou a concluir o ensino médio,
mas, mesmo assim, na década
de 1950, terminou de pagar, em
pouco tempo, uma casa própria
muito boa localizada num bom
bairro.
Trabalho duro
Minha avó nunca trabalhou
nem um dia em sua vida. Agora,
mesmo munido de um Ph.D, tive dificuldade em comprar um
apartamento próprio e fui obrigado a contrair uma hipoteca
de 30 anos. Minha mulher e eu
só conseguimos comprar uma
casa com quintal depois de ela
encontrar um emprego, efetivamente dobrando nossa receita. Contraímos mais uma hipoteca de 30 anos.
A vida de pós-graduando e
bolsista no Brasil me preparou
bem para um estilo de vida simples, assim como o fez meu casamento com uma brasileira
que, na juventude, freqüentemente vivera na quase-pobreza. Nós dois -ela de modo mais
visceral do que eu- conhecemos a fragilidade da existência
para a maioria dos humanos.
Mas a maioria dos americanos não faz idéia de como é a vida nos países mais pobres. Protegidos e doutrinados por jingles comerciais que promovem
o consumismo de maneira suave, eles vivem em um mundo de
fantasia, que reforça o desejo
de viver melhor do que viveram
seus pais.
Como em minha situação,
para equiparar-se ao padrão de
vida da geração anterior, as famílias americanas passaram a
precisar de pelo menos dois assalariados trabalhando em
tempo integral.
Mas como superar esse padrão? Os EUA encontraram
uma solução em meados dos
anos 1990.
Para começar, suas grandes
empresas transferiram a produção para a China e outros
países em que se pagavam salários miseráveis. Isso manteve
baixos os preços nos EUA, mas
também acelerou a desindustrialização e enfraqueceu a saúde geral da economia.
Em segundo lugar, os EUA
reduziram as restrições ao crédito. Depois de me graduar, em
1982, não consegui cumprir as
exigências para ter um cartão
de crédito. Hoje os americanos
possuem mais de 600 milhões
de cartões de crédito e carregam trilhões de dólares de dívida pessoal.
Espantosamente, mesmo na
esteira do derretimento multitrilionário das hipotecas de alto
risco, ofertas de novos cartões
de crédito continuam a chegar
pelo correio. Com a autorização de seus pais, até mesmo
crianças têm cartões de crédito
nos EUA.
As gerações de meus avós e
de meus pais costumavam economizar antes de fazer compras grandes.
Nas décadas de 1990 e 2000,
os americanos saciaram sua fome por toda uma gama de bens
-televisores de tela grande,
restaurantes de alta classe, esportivos utilitários que consomem muito combustível, carros importados de luxo, festas
de aniversário luxuosas para
seus filhos e grandes residências adquiridas com pequeno
ou nenhum pagamento à vista- por meio de empréstimos
maciços.
O século americano conquistou grandes vitórias para o
mundo, tais como a elevação
global da expectativa de vida.
Mas o crescimento econômico maciço e a transformação do
dinheiro em artigo que é transferido eletronicamente mudaram as percepções humanas do
dinheiro e do poupar.
A maneira aleatória, movida
pelo pânico em que as autoridades públicas vêm tratando a
crise, revela que ninguém compreende realmente o significado de um sistema de múltiplos
trilhões de dólares.
Lamentavelmente, em colaboração com as próprias pessoas que ajudaram a promover
essa "débâcle", as autoridades
estão buscando escorar o sistema, em lugar de reformá-lo.
Religião do sucesso
Confortavelmente posicionados no centro dele, muitos
americanos pensaram que o
crédito fosse ilimitado e abandonaram qualquer senso de
responsabilidade pessoal.
Cada vez menos americanos
sabem viver modestamente,
até mesmo entre as classes
mais baixas.
Em termos morais, os norte-americanos substituíram o
cristianismo por uma nova religião do sucesso. Essa religião
não tem vida após a morte nem
consideração pelas gerações futuras, pois seu credo consiste
em consumir o máximo possível aqui e agora.
KENNETH SERBIN é professor de história na
Universidade de San Diego (Califórnia) e autor
de "Padres, Celibato e Conflito Social" (Companhia das Letras), entre outros livros.
Tradução de Clara Allain .
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