São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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Armação secreta

Reunião de troca de e-mails entre o escritor Michel Houellebecq e o filósofo Bernard-Henri Lévy, "Inimigos Públicos" foi alvo de marketing avassalador, poucas vezes visto na indústria editorial

ALAIN BEUVE-MÉRY

Até aqui, tudo bem. Sim, a exclusividade que a editora Flammarion deu à revista "Nouvel Observateur" -que publicou, em sua edição de 2/10, trechos de "Ennemis Publics", um diálogo travado por correio eletrônico entre os escritores Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, de janeiro a julho de 2008- foi grilada pelo jornal "Libération".
O jornal obteve na quarta-feira, 1º/10, um exemplar da obra mais misteriosa do ano. Mas, afinal, isso oferece uma dupla exposição na mídia. E depois de ter ocultado durante meses o nome dos autores, hoje é essencial que todo mundo fale a respeito.
Na quarta, 8 de outubro, cerca de 120 mil exemplares foram distribuídos em território francês, nas grandes lojas e livrarias -de 100 mil, a tiragem inicial subiu para mais de 150 mil exemplares.
Mais do que nunca, a comunicação surge como força principal da guerra no mundo editorial. Criar o acontecimento, espicaçar a curiosidade dos leitores: Teresa Cremisi, a editora da Flammarion, endossou os hábitos de Bernard Grasset, que nos anos 1920 soube utilizar a publicidade para inventar o marketing literário.
Em um mercado deprimido -que os editores se lembrem, raramente o volume de vendas atingiu um nível tão baixo em um mês de setembro [retorno das férias de verão na França] -, todos os golpes (ou quase) passam a ser permitidos para despertar os leitores e provocar o ato da compra.

Aposta financeira
A aposta em torno do lançamento de "Ennemis Publics" [Inimigos Públicos, 336 págs., 20, R$ 59) não é apenas literária, embora Teresa Cremisi garanta "a qualidade do texto", que ela publica em co-edição com a Grasset.
O golpe literário se reveste de uma aposta econômica e financeira. "Sou uma comerciante na alma", ela confessa, antes de acrescentar: "Hoje mais vale se exasperar do que não existir". Geralmente são os documentos quentes da atualidade que se preparam em segredo.
Caso esconda o nome do autor ou o tema tratado, um editor deve sopesar com cuidado e usar a confiança que ele inspira para impor o anonimato. É preciso vencer a resistência de seus representantes, que ficam sem um argumento antecipado para "trabalhar" o livro. E, principalmente, vencer a resistência dos livreiros, que detestam essa prática que assimilam à venda forçada, pois eles são obrigados a fazer encomendas às cegas.
"Os livros anônimos, assim como os sob pseudônimos, tiveram sua era dourada nos anos 1990", nota Marc Grinsztajn, editor da Panama. Desde então, esse procedimento comercial foi muito usado, pois funcionou, mas os resultados nem sempre estão à altura das esperanças. Na Fnac, conta-se ao menos um livro secreto lançado por mês. A maioria passa despercebida. Entre os motivos citados para justificar essa prática, além da paranóia própria do meio editorial, figuram a urgência ditada pelo calendário eleitoral para os livros políticos e a vontade de evitar uma interdição ou uma apreensão pela Justiça, no caso de documentos ultradelicados.

Orquestração
O anonimato também permite que um autor trabalhe tranqüilamente, livre de pressões. Mas no caso atual, para justificar seu mutismo, Teresa Cremisi se protegeu atrás de razões jurídicas.
De fato, "Inimigos Públicos" não poderia ter sido publicado sem um acordo comercial com a Grasset, da qual Bernard-Henri Lévy é autor e editor. Mas as duas casas só se entenderam em setembro, quando a Flammarion conseguiu a distribuição e a divulgação da obra. A orquestração do segredo, por sua vez, aparece como a chave da estratégia editorial implementada pela chefe da Flammarion. Sem a intermediação da mídia, o livro correria o risco de fracassar.
Portanto, é preciso manter o folhetim. Ao dissimular o nome dos autores até o fim de setembro, a editora também limitou a colisão entre as duas funções de Michel Houellebecq, escritor e cineasta. Lançado em 10/9, o filme "La Possibilité d'une Île" [A Possibilidade de uma Ilha], que ele dirigiu, foi um fracasso doloroso, com menos de 15 mil ingressos vendidos.
Do lado de seus confrades editores, a recepção é mais simpática. Na editora Albin Michel, denuncia-se "a dimensão pega-trouxa" da operação, que não encontraria eco "sem a cumplicidade dos jornalistas". A diretora da Flammarion experimenta o documento literário "quente". Resta saber se os leitores irão atrás.

A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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