São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Pesquisador estuda a obsessão dos órgãos de° segurança dos EUA pelos intelectuais vindos° da Alemanha nos anos 30
Na mira do FBI

Sérgio Dávila
de Nova York

Que centenas de escritores, cineastas, artistas e profissionais liberais, judeus ou não, deixaram a Alemanha nazista nos anos 30 não é novidade. Muitos deles se espalharam pela Europa e, mais tarde, pelo mundo. Para os Estados Unidos vieram, entre outros, o Prêmio Nobel de Literatura Thomas Mann, seu irmão Heinrich, seus filhos, Klaus e Erika, o dramaturgo Bertolt Brecht, os escritores Erich Maria Remarque e Lion Feuchtwanger.
Ao pisarem em solo norte-americano, os intelectuais alemães passaram a ser sistematicamente investigados pelo FBI, a polícia federal, e outros órgãos de inteligência do governo do país. O que não se sabia até agora era a abrangência da investigação, que desceu a detalhes sórdidos, como preferências sexuais, suspeitas de incesto e hábitos "exóticos".
Nos relatos sobre Thomas Mann (1875-1955), a atenção sobre a existência do autor de "A Montanha Mágica" é chamada ao FBI pelo notório colaborador Walt Disney, o desenhista criador de Mickey Mouse. A partir de então, sua família vira obsessão do órgão. O filho é acusado de "pervertido"; a filha, de incestuosa e "masculinizada"; ele próprio sai dos arquivos com a imagem de colaboracionista do governo.
Tudo isso está em "Communazis - FBI Surveillance of German Emigré Writers" (Communazis - A Vigilância do FBI sobre Escritores Alemães Emigrados), que a Yale University Press acaba de lançar nos EUA. O autor é o alemão Alexander Stephan, que leciona sua língua na Universidade de Ohio e é professor convidado das universidades Princeton, da Califórnia e da Flórida.
Os documentos que comprovam as investigações estão à disposição do público desde os anos 70, mas Stephan foi o primeiro a requisitá-los e fazer uma pesquisa sistemática com os papéis. O resultado é quase um romance policial, que se lê curioso em saber o próximo passo, embora o final já seja conhecido por todos.
O termo que batiza o livro vem do modo como agentes do FBI se referiam aos escritores investigados, numa junção curiosa: primeiro eram os "comunistas" que fugiram do nazismo. Com o tempo, acabaram virando os "communazis". O preferido era mesmo Thomas Mann e sua família, que têm mil páginas de arquivo.
Seu filho Klaus Mann, autor de "Mefisto", é descrito num relatório como "reconhecido perverso sexual". O escritor morava num hotel em Nova York. Um dos investigadores do FBI diz que ele recebia regularmente um soldado para passar a noite, "embora o quarto só tenha uma cama". Em outro trecho, especula que ele tenha tido relações sexuais com sua irmã, Erika.
Já ao dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) foram dedicadas 400 páginas. O autor de "O Casamento do Pequeno Burguês" não era feliz no exílio. Simpatizante do comunismo, embora não ligado oficialmente ao partido, Brecht escreveu o poema "Reflexões sobre o Inferno", sobre sua estada em Los Angeles. Deixou o país em 1947, logo após se apresentar ao Comitê de Atividades Anti-Americanas. Sobre ele, o informante "T1" chegou a gravar as conversas que mantinha durante o sexo num hotel em Santa Mônica (Califórnia) com a amante, Ruth Berlau (Brecht era casado à época), assim como várias cartas que os dois trocaram.
Agora, Alexander Stephan prepara seu próximo livro, que deve contar o que aconteceu antes do grupo de alemães ir para os EUA, quando eram investigados pela inteligência nazista. Segundo o acadêmico, são mais de 10 mil páginas ainda intocadas.

Como o sr. soube que o FBI mantinha esses arquivos?
Os arquivos não são secretos. Podem ser obtidos por meio das chamadas "leis de liberdade de informação e privacidade", duas leis americanas, uma dos anos 50 e outra dos anos 70, que permitem que qualquer pessoa tenha acesso aos arquivos do órgão. É preciso provar que a pessoa sobre quem se quer pesquisar está morta ou então pedir permissão para algum familiar dela.
Mas o FBI colocou algum empecilho?
Não, foi tudo muito fácil, na verdade. O ineditismo é que ninguém tinha se interessado por um assunto que estava ali, à disposição. Não é preciso nem sequer ser cidadão americano. O problema é a burocracia. O FBI demora muito para liberar os arquivos. Eles recebem tantos pedidos que estão em geral dois ou três anos atrasados no processo.
O outro problema é que eles podem tampar com tinta parte dos arquivos, dependendo de cada caso. Em geral eles fazem isso com os nomes dos informantes ou os nomes das pessoas do FBI que estavam envolvidos na pesquisa. Às vezes, escondem o método como o arquivo foi obtido, quando é alguma coisa ilegal ou não muito sofisticada, como microfones nas casas, grampos nos telefones ou cartas abertas antes do destinatário...
O que mais o surpreendeu na investigação?
Cada caso é muito diferente, de longe eles se parecem muito, mas, quando se chega perto, vê-se que eles são diversos. Mas o que mais me surpreendeu foi o tanto de dinheiro e esforço que foi colocado nessas investigações e a obsessão pelo sexo. Em plena Guerra Fria, é de pensar que o FBI teria algo melhor para fazer, pois esses escritores não eram tão importantes nos EUA. À exceção de Thomas Mann, eles não eram nem sequer muito conhecidos por aqui e estiveram no país apenas por seis ou sete anos.
O senhor chegou a falar com os familiares deles?
Falei com alguns familiares, mas não foi muito produtivo. A maioria deles não tinha a menor idéia do que os investigados faziam ou pensavam, muito menos que eles estavam sendo investigados. Mas conversei com três agentes do FBI que tinham muito envolvimento com as investigações e eles, sim, foram de grande ajuda.
Há casos de escritores investigados pelo FBI em outros países?
Sei que aconteceu na Alemanha Ocidental com escritores suíços e é claro que aconteceu na Alemanha Oriental com os escritores russos. Para falar a verdade, acho que aconteceram não só com o FBI e os EUA, mas em todos os lugares do mundo. Eu ficaria muito surpreso se não acontecesse no seu país, por exemplo.
O sr. sabe de algum caso brasileiro?
Sei que alguns escritores alemães se exilaram no Brasil. E sei que o FBI, entre 1945 e 1947, fez uma grande investigação na América Latina. Foi antes da criação da CIA e antes ainda da criação do Escritório de Serviços Estratégicos, que depois virou a CIA, em 1947, quando J. Edgar Hoover achou que não tinha conhecimento suficiente nem meios de obter informações suficientes pelo mundo.
A Inteligência Militar, que até então fazia o serviço que depois virou da CIA, não gostou nada disso. Finalmente, Hoover mandou agentes do FBI para todas as grandes cidades da América do Sul. Eles ficavam em geral associados às embaixadas e trabalhavam como diplomatas, para fazer investigações.
De onde vem o seu interesse pelo tema?
Estudei durante muitos anos os escritores e intelectuais alemães exilados, que foram obrigados a deixar a Alemanha quando os nazistas tomaram o poder em 1933. Então, eles foram para várias partes do mundo. E, em 1940, quando os nazistas já estavam espalhados por quase toda a Europa, eles foram obrigados a deixar o continente e vir para os EUA. Como sou alemão e trabalho aqui, o assunto tem importância natural na minha vida.
Do que tratará o seu próximo livro?
Será a parte inicial desse livro, de certo modo. As mesmas pessoas sobre quem escrevi foram expulsas da Alemanha em 1933 pelos nazistas e logo depois o governo tirou suas cidadanias. E os nazistas também fizeram uma grande investigação sobre eles e sobre as atividades consideradas antigermânicas. É um material enorme, mais de 10 mil páginas, sobre os mesmos nomes, mas entre 1933 e 1941. E dá para escrever ainda um terceiro volume, sobre esses escritores voltando para a Alemanha após a guerra.



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