São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Ponto de fuga
Trono de areia

Jorge Coli
especial para a Folha

Antes de cada filme do grupo dinamarquês Dogma 95 aparece, na tela, um certificado que lembra aqueles, antigos, da censura brasileira. Ele garante o "voto de castidade" proclamado em 1995 pelos membros desse movimento, num manifesto contra o cinema feito de "ilusões", construído com cenários, acessórios e truques. Dogma 95 quer que apenas a vida interior dos personagens justifique a obra. Trata-se de um rigor ortodoxo impondo limites estritos. Isso não impede, apesar de todos os esforços, a afirmação da personalidade de cada diretor. O mais importante, no entanto, é que os filmes resultam originais e fortes.
Houve alguma crítica negativa ou condescendente em relação a "O Rei Está Vivo", de Kristian Levring, um dos fundadores do Dogma 95. É injusto. O filme avança num fluxo que toma o espectador e o conduz, sem nenhum tédio, até o final. Possui ainda a força da beleza. A câmara de Levring capta a desolação de uma aldeia fantasma, dissolvendo-se na escala grandiosa do deserto e suas dunas. Robinson às avessas, os personagens perdidos ali, sem consciência clara da própria condição, decidem montar o "Rei Lear".
As circunstâncias desesperadas revelam o jogo infinito das representações. Tudo adquire a natureza do simulacro e nada resiste: a "psicologia" de cada um é mera máscara encobrindo algo de informe e inatingível; o que poderia ser chamado de afeto e de humano são convenções prestes a se dissolverem, depois de se revelarem monstruosas. Bergman, em "Vergonha", de 1967, havia instaurado angústias semelhantes.
Avoengo - Longínquo e próximo ao mesmo tempo, tudo, nesse mundo, parece se mover como num aquário um pouco turvo. O humor está presente, mas banhado por uma ternura nostálgica. "Inquietude", de Manoel de Oliveira, filme de 1998, trança três episódios que se manifestam pelo jogo do teatro, do mito e da memória. Não há propriamente um discurso, algo que possa ser transformado, com facilidade, em palavras. Os painéis desse tríptico mostram-se tão heteróclitos que a coerência parece se esconder. Mas o cineasta explica: buscou filmar "o desejo latente nos mortais de atingir a imortalidade".
Começa pela velhice e pela glória, recua para a idade madura e para o amor, termina pelas forças misteriosas da juventude. Com 90 anos, o português Oliveira volta, no último episódio, aos secretos primórdios de tudo. Aqui, não são as lembranças que buscam se investir de eternidade. Águas brotam e tornam-se moto incessante. O tom de conto filosófico vai cedendo, aos poucos, à metafísica do visível, matéria que Oliveira usa para dar forma a seu cinema. Nele, em vez de uma trilha sonora de "realismo" ilusório, ecoam incertezas, fragilidades, procuras. Os diálogos, belos como os mais altos textos literários, ao aflorarem nas falas dos atores, brilham, intensos, e morrem para dar lugar a novos brilhos.
Passos - Manoel de Oliveira aparece, ele próprio, dançando um tango, em "Inquietude". "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino", versejou Manuel Bandeira diante da morte que espreita. Alguns velhos muito velhos possuem esse vigor de Oliveira, que renova a si mesmo e fascina a todos. Verdi foi assim. Enquanto a morte não vem, o cineasta preenche o tempo da meditação brincando de bailarino.
Arabescos - Em "Inquietude" há uma estranha feiticeira: é Irene Papas, por si só um mito, senhora dos destinos da natureza. Ela conversa em grego, recita Hesíodo para a jovem aldeã, que lhe responde em português. São sabedorias, femininas e mágicas, situadas para além das línguas. Suzy, uma outra personagem, cocote melancólica, explica que a vida é apenas um detalhe. Um ancião lamenta-se, repetindo que envelhecer é morrer pela metade. Sem demonstração nem sistema, Oliveira sonda os limites corpóreos, físicos, para revelar melhor a inutilidade de seu gesto.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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