São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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MILLÔR
Deus do céu, Millôr, mais poetas

Seamus Heaney
Prêmio Nobel de literatura de 1995.

"Por trabalhos de beleza lírica e profundeza ética, que exaltam os milagres do dia-a-dia e o passado ainda vivo", Seamus Heaney foi o último a conquistar o prêmio Nobel (um milhão de verdinhas, nobreza intelectual vitalícia, e conseqüente inveja dos queridos colegas). Robert Lowell acha que é "o mais importante poeta irlandês depois de Yeats". O advérbio depois é bem colocado. Vai ser difícil alcançar Yeats. E para o Nobel eu, já disse, preferia, do outro lado do mundo, o israelita - nascido na Alemanha - Yehuda Amichai, morto recentemente, e de quem publiquei aqui alguns poemas.
De qualquer forma sempre foi um total mistério, pra mim, como é que esse pessoal do Nobel compara poetas de várias línguas, tendências, e geografias, chegando à conclusão de que um é o maior! Mas prêmios são prêmios e é por eles que os precários valores humanos se medem e orientam. Só uma pessoa em um milhão tem opinião própria. No Brasil, portanto, quinze. Todos, naturalmente, meus leitores. Não é mesmo, rapazes?
Apesar de homem do mundo, professor de retórica em Harvard desde 82 e de poesia em Oxford desde 89, Seamus, nascido numa fazenda no interior de Belfast, é católico irlandês. Irlandês-irlandês e não adianta; no passado ancestral há a memória inesquecível da fome de l847-52, o trágico acontecimento da história da Irlanda. "Num país de oito milhões de pessoas a FOME causou a morte de aproximadamente um milhão, forçou outro milhão a imigrar e reduziu a população do país a um milhão no início do século XX" (This Great Calamity, The Irish Famine 1845-1852 (Christine Kinealy, Gill & Macmillan, 451 PGS, $24.95/De Valera, The Man Who Was Ireland, Harper Collins, 772 pags, $30,00)
E há sempre a nostalgia de uma Irlanda que não existe mais, além da glória e da responsabilidade de nascer num paízinho que nunca mais ultrapassou os 3 milhões de habitantes, mas deu ao mundo uma espantosa estirpe literária: Swift, Burke, O`Flaherty, Yeats, Dylan Thomas, Joyce, Becket, Sheridan, Wilde, O`Casey. Se não bastasse Shaw.
Seamus Heaney se preocupa ao mesmo tempo com a violência e seus contrastes. Numa entrevista acentua sua reticência, e reconhe o risco disso para um escritor. "Vivemos mergulhados profundamente numa terra de opções de sentimentos, sob pesadas nuvens de resignação."
Entre alguns belos poemas, escolhi traduzir Personal Helicon (Hélicon Pessoal). Hélicon é o monte grego onde se reuniam as musas. O Hélicon de Heaney é mais as entranhas da terra. Optei por este poema por recordações de minha própria infância, no Meyer quase rural, mas também por forte impressão literária. Em O Jardim das Cerejeira, Tchecov escreve uma cena melancólica, no campo, quando se ouve, no céu, o vibrar de uma corda, como uma harpa, que se rompe. Ao traduzir a peça, descobri, através de uma biografia do escritor, que esse som, na memória de Tchecov, vinha de uma caçamba metálica caindo no fundo de uma mina de carvão, nas vastidões da estepe do Donetz. Lugar absolutamente primitivo, onde Tchecov passava ferias na infância.
Hélicon Pessoal
Quando criança, não conseguiam me afastar de poços
E velhas bombas com baldes e cordames.
Eu amava o abismo escuro, com o céu enclausurado,
Os odores de águas mortas, fungos úmidos.

Uma vez, numa olaria, do alto de uma tábua podre,
Saboreei o rico estrondo de um balde
Na ponta de uma corda, caindo direto
Tão fundo que não se via nenhum reflexo.

Um raso seco num poço de pedra
Fecundava como qualquer aquário.
Quando eu arrancava raízes
de vegetais em decomposição
Uma cara branca tremulava embaixo.

Outros poços tinham ecos,
devolviam meu próprio chamado,
Com música nova e clara. E um
Era assustador, pois lá, no meio de samambaias
e dedaleiras, um rato patinhava em meu reflexo.

Hoje, espiar raízes, apalpar lama,
Olhar, com olhos de Narciso, alguma fonte,
Está abaixo de toda dignidade adulta. E rimo
Para ver eu mesmo, e fazer ecoar a escuridão.



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