São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Édipo contra o Führer

Ganhadora do Goncourt, principal prêmio literário francês, obra se apóia na tragédia grega

MICHEL SCHNEIDER

Sobre a morna planície da temporada literária da França caiu um meteoro. Imenso, sombrio, incandescente, arrebatador. "As Benevolentes" é o relato monstruoso de um personagem monstruoso numa época monstruosa. Um afresco barroco sobre a Alemanha entre 1941 e 1945.
O trabalho espanta. Como seu autor. Jonathan Littell esteve por muito tempo envolvido com causas humanitárias, e ele narra sua história como uma doença ou um pesadelo lento e viscoso, em meio a um rio de horrores. Como a linguagem: o livro foi escrito em francês por um norte-americano, filho de um célebre autor de romances de espionagem.
O narrador, Max Aue, é um torturador, tenente-coronel da SS, a tropa de elite nazista. Um homem pérfido, que deplora o amadorismo dos primeiros massacres praticados pelos alemães na Ucrânia. Um intelectual frustrado que julga sadio o caráter antiburguês e antielitista do nacional-socialismo.
Um escritor fracassado que se aproxima dos intelectuais colaboracionistas franceses. Uma alma artística que lê a "Correspondência" de Stendhal ou a "República", de Platão, à beira das valas comuns.

Um homem comum
Ele escapou da Alemanha arruinada e se estabeleceu em Paris, onde se casou, mas não sem ceder a ocasionais casos com homens. Dirige uma fábrica de rendas, mas pensa com nostalgia em outra, uma fábrica de morte. Um homem comum, com suas contradições, ímpetos, arrependimentos; ele ama os números, contesta as contas no que diz respeito às suas vítimas e refaz os cálculos, como se estivesse computando o resultado de um jogo de cartas.
Muitos anos se passaram. Ele continua irreconciliável, sente a mácula e convoca a escrita, em vão, como herdeira única de seu crime. Relembra os bons tempos, se atribui um papel de destaque, reorganiza os acontecimentos, convenientemente esquece fatos.
Mas, à medida que narra, surgem lembranças. Aue não aprecia isso. Elas incomodam. "Pensar não é bom", diz. Ele ilustra a definição de Hannah Arendt sobre o mal: "A ausência de reflexão". O mal em que ele reconhece ter mergulhado não tem paixão, não tem prazer. É um mal frio.
Descreve tudo como se não tivesse passado de testemunha distante. Revê, sem sentir nada, a cena da morte de uma mulher ucraniana e relembra o cadáver dela lançado à neve.

Homossexualidade
As cenas que se sucedem permitem apreender muito sobre a ambivalente relação entre o nazismo e a homossexualidade. "Foi assim, com o cu cheio de esperma, que decidi me alistar no Sicherheitsdienst" [serviço de segurança da SS].
Quando ele diz, sobre uma mulher torturada, que "o corpo daquela menina representava para mim um espelho", o personagem -não "o herói"- deixa escapar que aquela ferida pela qual ele não cansa de se vingar deriva de sua própria passividade, de seu desejo de se submeter a outros homens.
"A literatura é a infância recuperada", disse Georges Bataille em "A Literatura e o Mal" [L&PM]. Mas acrescentou que isso não o inocentava e que deveria se declarar culpado. Uma tragédia moderna diante da qual os deuses permanecerão mudos e os juízes petrificados de horror? "As Benevolentes" (ou "Eumênides") é o nome que Ésquilo atribui às Erínias na última de suas tragédias. Littell imita a "Orestéia" [leia texto nesta pág.]. Aue, como Orestes, sofre alucinações, revê ou sonha a morte de sua mãe. É como um Édipo abatendo o Führer.
As referências mitológicas, aplicadas ao Terceiro Reich, têm algo de artificial; é difícil acreditar na paixão incestuosa de Max por sua irmã, e o assassinato de sua mãe tampouco é convincente. Oficial superior na SS, ele assassina sua própria humanidade ao colaborar com a "solução final".
Obra-prima? Não. Um "tour de force", sem dúvida, mas um daqueles que espantam sem comover. Colocar em posição central um personagem imensamente odioso expõe o leitor à fadiga e o incita a abandonar esse monólogo obsessivo. O ódio é uma paixão repetitiva e descontínua demais para funcionar como única sustentação de um romance.
Seria possível dizer sobre Aue ou pensar sobre Littell que ambos escrevem para não repousar "a sós com o tempo, e a tristeza, e a dor, e a memória, a crueldade da existência e a morte ainda por vir".
Para quem eles escrevem? Para nossas sombras, para que elas se calem. Por que eles escrevem? Para que as Erínias se transformem em "Eumênides" e para que a tinta nos lave das palavras impronunciadas.
Seria preferível que o personagem principal não fosse o falastrão satisfeito que não precisa de companhia, mas, sim, suas vítimas mudas, implorando às deusas encarregadas de punir os crimes que não sejam benevolentes.


MICHEL SCHNEIDER é psicanalista e escritor francês, autor de "Mortes Imaginárias" (ed. A Girafa) e "Marilyn, Últimas Sessões".
A íntegra deste texto saiu no "Le Point".


Tradução de Paulo Migliacci.


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